Solidão a Mil

"A vida de todas as nascentes profundas decorre com vagar; tem de esperar muito tempo antes de saber o que caiu nas suas profundezas. Tudo o que é grande foge da praça pública e da fama: é longe da praça e da fama que sempre viveram os inventores de novos valores. Foge, meu amigo, refugia-te na tua solidão! Vejo-te aguilhoado pelas moscas venenosas. Refugia-te onde sopre um vento rijo e forte! Refugia-te na tua solidão! Viveste muito perto dos pequenos e dos miseráveis. Foge da sua vingança invisível! A teu respeito só têm um sentimento, o rancor. Não levantes mais a mão contra eles! São inumeráveis; o teu destino não é ser enxota-moscas! São inumeráveis, esses pequenos, esses miseráveis; e já se viram altivos edifícios reduzidos a escombros pela ação de gotas de chuva e de ervas daninhas."

Friedrich Nietzsche. In: Assim Falava Zaratustra


Capítulo 1 - Baby Blue (um ato de amor a Joyce Ann)

Toda noite, quando abro meus olhos para dormir e acomodo meu cérebro num travesseiro de flores, concedo a Deus alguns momentos de atenção. Ele então, agradecido, acende seus belos refletores de vertigem sobre mim, para que eu veja encantado no verso das pálpebras a imagem gloriosa do dia que acabei de viver. Minhas noites começam sempre assim.
Principalmente agora, que da vida só temos o resto.
"Memento mori" — sussurra-me Deus.
Comigo ele fala em latim.
É fatal.
Olho então na engrenagem do espelho profundo que trago no peito, e fico fazendo reflexões. E quase sempre me pergunto:
— Será que existe outro modo bom de se viver?
Fico pensando, e acabo sonhando.
Eu sonho tão alto que o próprio barulho me acorda.
Já me acordo com Deus perto.
E me desperto dançando e perguntando se há no mundo melhor coisa que ser feliz. Vejo estrelas no meu teto, repito a oração como se reza, e me espreguiço felino, gaiarsa, gostoso — sorrindo. Mas me levanto só depois que gargalho. Se não acho motivos para gargalhar também, não os acharei para levantar. Enquanto isso, faço contas complicadas de cabeça, abraço a Vênus de Milo, calculo logaritmos a olho, traduzo algumas frases do latim, reconstruo mentalmente um ranchinho de sapé, imagino cúpulas geodésicas no quintal da nossa casa, visualizo Marlon Brando sem destino. Acordo já fazendo ginástica com meu cérebro, pois não quero teias de aranha nos meus neurônios. Quero distância do AD. E sinapses, só as brilhantes me excitam. Potencializo-as, a cada instante, com lógica e amor.
(Toda emoção, você sabe, é produto do raciocínio.)
Acordo e me levanto, deslumbrado e respirando, já cheio de luz — iluminado, portanto, de novo, de Deus — e de mim.
Meus dias começam assim.
Hoje de manhã sentei-me em frente ao espelho do mundo que trago no peito, e fiquei fazendo reflexões: Vi que vocês... vocês têm nas mãos um produto chamado Vida, um verdadeiro tesouro — e não sabem bem o que fazer com ele. Então saem feito doidos querendo vendê-lo a todo custo, por qualquer preço, nesse mercado em que se expõem. Desgraçam-se. Viram comerciantes de si mesmos. Exploram-se. Bêbados de uma espécie triste de álcool, dilaceram seu próprio presente com voracidade absurda de piranha faminta. Despedaçam-se. Consomem-se. E acabam desperdiçando, um a um, todos os instantes mais gloriosos que a Vida tem.
Até quando?
A rotina nos mata, eu sei.
Mas pode também nos salvar, dependendo das circunstâncias.
Apesar de viver como louco, tenho certas rotinas.
Todos os dias, acordo naturalmente. Abro a janela da madrugada. Sempre de bom humor. De ótimo, de excelente humor! Quem dorme com Deus acorda sorrindo. Então eu sorrio, gargalho, saúdo-me, estico-me, alongo-me, beijo-me. Amo-me, loucamente. Celebro-me. Dou uma espreguiçada doce, orgástica, demorada, leio alguma coisa leve, Lorca, Neruda, excito meus neurônios, faço alguns planos, desfaço muitos outros — e então me levanto, em todos os sentidos. Arrumo minha cama zen. Quinze minutos de pilates, mil socos poéticos no ar, e me torno Bruce Lee.
Nem me lembro da palavra pressa.
Vejo se sobrou na pia alguma louça ou copo da noite anterior, e la-vo-os, delicadamente. Arrumo as flores, rego as plantas, falo sozinho, canto, grito e danço. Viro uma festa. Depois, com ajuda de Beethoven, jogo o lixo, meditando, como fosse um jogo. Faço café com amor e água benta, fervida na chaleira que ganhei de minha mãe. Aprendo uma palavra nova numa língua diferente, e então sento-me aqui para te contar os meus sonhos.
Mais tarde, vou ver o mar azul do Guarujá — e caio no mundo...
É a vida.
Depois, ali pela hora do almoço, eu viro um construtor de pirâmides. Vou cuidar das obras e fazer de conta que sou arquiteto. Conversar com pedreiros, subir em andaimes, atender meus clientes. Ganhar o pão que Deus amassou. Mas o que eu gosto mesmo é de escrever. E de pensar na vida e na liberdade dos meus amores.
Fico filosofando.
“Não sei o que dói mais...” — eu adoro fazer comparações. Nasci para o Verbo. As palavras já nascem deliciosas na minha língua portuguesa. No meu pensamento e no meu coração. Crio analogias. Invento coisas. E continuo não sabendo o que dói mais. Se o eventual castigo pelo desejo realizado, puro, livre, satisfeito — ou se esse mesmo desejo sufocado no peito, contido, esmagando a minha alma..
— Não sei o que dói mais!
É o dilema entre exercer a liberdade ou viver na escravidão. Daqui a pouco eu volto a falar desse assunto. Deu uma vontade enorme de escrever “capoquinho eu vórto a proseá essas coisa...” — como se eu estivesse de novo em Dublin, na casa daquele louco que escreveu Ulisses.
Na verdade, eu sei, sim, o que dói mais.
Até porque, aos treze anos, menino ainda, sentado no cinema do interior, acabei misturando Pitágoras, Pasolini, Antonio Visconti, Samuel Barbosa e Sônia Maria, só para fazer uma promessa: “Todas as minhas relações de amor serão triangulares: eu, o outro — e a Outra.”
A relação de amor é um tripé, e desaba se um deles faltar.
Mas já notou que entre você e a liberdade sempre existe um muro, baixo, feito de tijolos e ciumentos?
Salte logo essa barreira: a vida está lá do outro lado!
— É impossível ser feliz sem liberdade.
Pensei que esse assunto só viria mais tarde, mas tem que ser agora. Afinal, você pode sofrer um colapso na página dez e morrer sem saber o que eu digo. Ser transformado em cinzas por um ataque suicida, ou levar tiro de um ciumento, quem sabe.
O que eu digo não é uma provocação: é um desafio emocionante: é a possibilidade aberta de escolher o próprio caminho na vida. Nada mais — nada menos! É um convite à transformação pessoal. A busca por algo fundamental à dignidade humana. O que proponho vai no sentido de romper com esse marasmo em que tua vida acabou se transformando. Uma radical e consciente ruptura com essas normas morais injustas, e com tudo o que de alguma forma te oprime e faz sofrer.
Você hoje mais tosse do que ri...
Só quando assumes ter um dono é que ficas dispensado de lutar.
Até peço ajuda a uma segunda pessoa do singular, só para te chamar à Razão. Ser escravo é muito fácil: qualquer idiota consegue.
Reaja!


O que eu digo é mais ou menos isso. Até o fim do livro vai ser esse o tema principal. Até o fim dos meus dias vou ficar falando dessas coisas. E se a você não interessam tais assuntos, feche este livro agora mesmo, e me abandone. Portanto, se não puder me dar atenção me dê sossego!

Mas, outro dia, adolescente ainda, quando eu estava começando a entender a vida, escrevi minha melhor definição de amor.

Amar é permitir sempre, amar é deixar que o outro vá – ou que fique, se assim o desejar. Amar é ter respeito absoluto pela própria liberdade, e pela liberdade do outro. Amar é compreender sempre. E isso não significa apenas entendimento racional, vai além, muito além: Amar é reconhecer, afetuosamente, o direito que o outro tem de fazer suas escolhas. Mesmo que essas escolhas eventualmente me excluam...

Quem não concorda com tal idéia de amor não merece o meu. Aliás, eu recuso o amor de quem não ama a própria liberdade antes mesmo de me amar. O amor tem que ser livre — em todos os sentidos. Até porque, se não for livre, só pode ser preso.

E toda mudança, você sabe, requer um plano. À vezes, um plano esboçado em folha de papel, outras vezes, um plano intuído em nosso próprio. Mas a mudança mais gostosa é aquela que só requer plano inclinado, por onde vamos escorregando em óleo de amêndoas como se fosse no corpo de um grande amor, deslizamos até a borda — e então saltamos no vazio do belo escuro profundo da vida.

Quando as coisas resistem às idéias e o mundo resiste aos sonhos — não devemos mudar de sonhos nem mudar de idéias: temos é que mudar de coisas e mudar de mundo.
(Ah, “Memento mori” quer dizer “lembra-te que morrerás”.)
Eu gosto de mudar.
Descendo de Heráclito!
— Só o que está morto não muda.
Acontece que eu sempre troco um grande entusiasmo por outro, maior ainda.
Amores, vou tê-los muitos para que os tenha sempre. Esta, a melhor filosofia. Ousei amar diferente, tive coragem de continuar puro nos meus relacionamentos amorosos. Alguns querem punir-me por tanto, mas eu sobrevivo, sobre todos. E o que mais indigna meus detratores é que há lirismo na minha obscenidade. São poéticas as minhas transgressões. Quando enfio a cabeça pela janela da parede da vida, já não sei se estou olhando para fora de mim ou para dentro. Então mergulho nessa alegre correnteza interna onde eu rio fluente de mim mesmo — líquido, cristalino, vibrante.
Nunca deixarei de ser louco.
Apesar disso, eu sei que preciso acelerar as circunstâncias, tenho que aumentar o tamanho, a freqüência e a delicadeza dos fatos que me circundam, trazer Deus em pessoa para jantar comigo, às vezes, tomar um vinho com Ele, e depois inundá-lo de carinho e gratidão.
— À luz de velas!
Deus sempre foi generoso comigo.
Mas tenho que resistir aos ataques da mediocridade cotidiana e me afastar da jacarezada. Quero encher de glória os buraquinhos que os ratos fazem no pão da minha vida. Preciso reagir, tornar-me um subversivo ainda mais radical, abandonar as hienas, jogar fora tudo o que não presta, refinar as relações, multiplicar o que me eleva.

Sei que o principal sobrenome do amor é ilusão.
E sei também que ser livre é fundamental.

Portanto, se eu tiver que um dia me desfazer de todos os meus bens, a liberdade será o último deles. O penúltimo, ainda não sei.

Quanto ao que penso sobre meus amores, disse quase tudo a Edma Lux, no seu livro “Perguntas que a mulher faz quando sonha”. Onde deixo claro que valorizo uma mulher não só pelos prazeres que posso ter ao seu lado, mas, principalmente, por aqueles que deixo de ter por causa dela.
Já me casei quatro ou cinco vezes, informalmente, com seis ou sete mulheres maravilhosas, mas continuo achando que o casamento é o túmulo do amor. O cemitério das paixões...
— Por isso continuo solteiro!
O casamento é uma velha escola em ruínas que só tem duas matérias: sadismo e masoquismo.
(Dos dois lados.)
E casamento indissolúvel, então, é pior do que prisão perpétua!
Acontece que temos sempre muitas razões para casar. A sociedade em que vivemos nos leva a seguir esse caminho. Quase todos sucumbem.

Sou observador.

Tem dias que vejo uma procissão de formigas em direção a um saco de lixo — e me lembro de certas pessoas: trabalhando, cumprindo horários, correndo muito, cheias de pressa, seguindo regras tolas, mansas, ordeiras, pacatas, oprimidas em grupo, exploradas, submetidas, e uniformizadas.
U-ni-for-mi-za-das!
— E sendo “felizes”, cada qual à sua maneira...
Passam a impressão de que põem uma dose de fúria nessa busca cotidiana pelo nada. Agitam-se como em vias de alcançar o céu. No fundo, se esperneiam, mas não olham sequer para cima. Vivem dormindo. Por isso não sei mais se o que sinto por elas é pena ou desprezo.
Só não creio que possam mudar de verdade — de verdade.
Parecem moscas sobrevoando um monte daquela coisa...
De vez em quando se mexem, coitadas, mas se mexem pouco, timidamente. Nessa agitação aparente não querem turbulências nem riscos: meros movimentos de acomodação. Parece que estão por demais atolados nessa meleca gosmenta que chamam de vida, e de tal forma envolvidos com coisas tão rasteiras, tão vãs, tão minúsculas, que só me resta dar-lhes um digno — e definitivo — adeus.
Doentes!

Não devo mesmo ter dó dessa gente, porque só me daria pena o doente que não tem o remédio diante de si.
É compreensível, como diz Montaigne.

E eu digo, sinceramente: jamais experimente a Liberdade se você não for capaz de suportar a Solidão.

É bom diferenciar claramente solidão de solitude: esta é voluntária e corajosa; aquela nos é imposta pelo Medo. Solidão é carência. Solitude é suficiência. A solitude tem beleza e esplendor: por isso, positiva. A solidão é humilhante, escura e melancólica: portanto, negativa. A primeira é saudável; a outra, uma doença. Solitude é coisa do indivíduo. Inteiro. Único. Indivisível. Porém, a solidão vive sempre em busca de caras metades. Sempre pede companhia, implora companhia. Mas só companhia certamente não resolve. Tanto, que existe solidão a dois e solidão a mais. Até comecei a escrever um livro, cujo título é Solidão a mil — com o duplo e louco sentido que esses termos sugerem.

O tema é complexo, e eu fico pensando. Será que você, você que não entende como posso ter feito ontem um jantar só pra mim — com luz de vela e tudo — será que você nunca passou uma noite inteira lendo um livro, sublinhando palavras ao acaso, cotovelos apoiados na mesa, as mãos e um belo copo de vinho suportando a cabeça dançante? Será que você nunca passou uma noite inteira sozinho, deliciando-se com você mesmo, solto e alegre — sem saber nem como amanhecer?
Pois então é preciso que eu te pergunte: Você é livre para vivenciar gostosamente a própria Solidão — se quiser — ou tem sempre que reparti-la com alguém?

O direito à solidão e a capacidade de exercê-lo plenamente são, para mim, mais importantes do que a solidão em si. Entretanto, como já disse, quando falo em solidão eu me refiro, mais apropriadamente, à solitude — que é algo muito além do que apenas estar sozinho. Aliás, eu adoro companhia! Mas tem que ser companhia inteligente, libertária, excitante, criativa e, preferencialmente, sensual. Quem não tem sensualidade transbordante não inspira um segundo sequer do meu tempo.

Schopenhauer, num texto chamado Felicidade Solitária, dizia que "a solidão concede ao homem intelectualmente superior uma vantagem dupla: primeiro, a de estar só consigo mesmo; segundo, a de não estar com os outros. Esta última será altamente apreciada se pensarmos em quanta coerção, quantos estragos e até mesmo quanto perigo toda a convivência social traz consigo. "Todo o nosso mal provém de não podermos estar a sós", diz La Bruyère. A sociabilidade é uma das inclinações mais perigosas e perversas, pois põe-nos em contacto com seres cuja maioria é moralmente ruim e intelectualmente obtusa ou invertida. O insociável é alguém que não precisa deles. Desse modo, ter em si mesmo o bastante para não precisar da sociedade já é uma grande felicidade, porque quase todo o sofrimento provém justamente da sociedade, e a tranquilidade espiritual, que, depois da saúde, constitui o elemento mais essencial da nossa felicidade, é ameaçada por ela e, portanto, não pode subsistir sem uma dose significativa de solidão. Os filósofos cínicos renunciavam a toda a posse para usufruir a felicidade conferida pela tranquilidade intelectual. Quem renunciar à sociedade com a mesma intenção terá escolhido o mais sábio dos caminhos."

Porém, ao contrário do que faz Schopenhauer no texto acima, eu não generalizo. Acho as relações sociais extremamente importantes. Relações sociais ao vivo, e não apenas na internet. Aliás, como já disse acima, eu adoro companhia humana! Mas tem que ser companhia inteligente, criativa, excitante, etc. Claro que nas relações de amizade sou muito mais condescendente. Tenho amigos conservadores e até ciumentos — e não será por isso que me afastarei deles. Assim como nas relações profissionais ou comerciais: não seria possível exigir todas essas qualidades de um funcionário ou de um cliente. Mas procuro intensificar e aprofundar as relações que mantenho. Não gosto de relações superficiais, nem mesmo com garçons ou porteiros que me servem. Trato a todos com delicadeza e respeito.

Este é apenas um breve comentário do que pretendo dizer neste livro, e ainda sendo refinado. Não tem pretensões de ser base para uma tese acadêmica. Embora eu pense realmente dessa forma, são devaneios, só.
E o contraditório sempre será bem vindo.

(...)

Sei que vocês discordarão de muitas coisas que aqui vão ler. Muitas. Afinal, cada um de nós tem seu próprio tempo, seu sistema de valores, sua própria maneira de julgar um fato, de analisar fenômenos, de encontrar saídas. Cada um de nós tem sua particular visão do mundo, intransferível, única, exclusiva. Cada um tem suas idéias de verdade, de justiça, de amor, de religião. Cada um de nós tem seu próprio modo de se salvar.
Ou de se foder.
Cada um de nós é um ser único.
Mas interagimos, em nome de alguma filosofia, de um negócio, de um deus, um projeto, uma causa. E existem atributos que nos elevam à categoria de humanos: inteligência, amor, criatividade, compreensão, espontaneidade. Tudo isso deixa a vida mais fascinante ainda. E o que é melhor: a vida que merecemos viver só depende de nós.
(...)
Não pretendo te salvar, mas quero que você abandone as verdades recebidas por herança ou por contágio, e passe a pensar com independência. Se chegou até aqui (não só neste livro, mas na vida), é porque você deve ter aí na cavidade do crânio uma parte do sistema nervoso central chamada encéfalo, que abrange o cérebro, o cerebelo, pedúnculos e outras coisas que nem sei. Essa máquina sensível requer cuidadosa manutenção, precisa de carinho, tempo, leitura, dedicação, e liberdade.
Não permita, portanto, que joguem lixo nesse aparelho.

Nada de verdadeiramente grandioso foi criado até hoje na história do mundo sem paixão, ousadia, inteligência, loucura — e liberdade.
E eu só entendo a liberdade como liberdade de mudar de vida.
Qualquer outra que não essa será pouca.
Por isso, reaja!
Mude.
Mude, mas comece devagar, porque a direção é mais importante que a velocidade. Lá no capítulo final vou te apresentar esse meu poema Mude. Vou dizer para você experimentar a gostosura da surpresa, do inesperado. E que procure fazer uma viagem longa, de preferência sem destino... Desperte o aventureiro que dorme no teu peito. E se não encontrar razões para ser livre, invente-as. Seja criativo. Mude. Você vai acabar conhecendo coisas melhores e coisas piores, mas não é isso o que importa.
O importante é a mudança, o movimento, a energia.
Só o que está morto não muda.
Até o poema Mude eu mudo sempre. Por isso é que fiz várias versões dele. Para dizer que, mesmo que você já tenha encontrado seu suposto melhor lugar na vida, procure outro. Se ainda não achou o melhor caminho, continue procurando-o. E após ter certeza absoluta de tê-lo encontrado, ainda assim procure outro. A pior coisa da vida é a estagnação — não pare nem mesmo quando estiver no pico que você suponha ser o mais alto. Porque sempre será possível ir além.
A vida tem milhares de caminhos possíveis.

Reaja!

Qualquer futuro é melhor do que qualquer passado.

Fico pensando.
E me lembro do filho (da p.) da Clarice Lispector, que roubou-me esse poema. E o vendeu por 40.000 dólares para a Fiat fazer o belíssimo comercial! E ainda não me devolveu esse dinheiro...

Até o Paulo Coelho PLAGIOU esse poema! E o estou processando judicialmente em 2015.

Acontece que:

Brigar comigo — e vencer — são coisas contraditórias, mutuamente excludentes.
Há que se escolher uma delas.

Sou Deus quando me armo de fúria e perdoo quem me ofende. Por-que Deus está dentro de mim, e fúria é o nome de um silogismo. Quando se trata de uma história de amor, e não apenas, todo processo deve ter três instâncias básicas: verificação, avaliação e julgamento. E só depois — conforme o caso — condenar ou absolver.
Mas alguns não passam pelos estágios racionais fundamentais, e condenam logo de cara, sem considerar a presunção da inocência.
Alguns não se preocupam com a própria reputação intelectual.
É a vida, você sabe.
Mas a morte é um cavalo que trota encilhado ao lado da gente, e nos olha por baixo do tapa, convidando.
Sempre recusei.
— Morrer é a última coisa que eu quero fazer na Vida!
(...)

O Cadáver de um Palhaço.

Se o que digo é fundamental, por que então considerá-lo de outro modo? Ainda que você não goste do que escrevo, acredite em mim. Mas isso não tem hoje a mínima importância, pois não escrevo pra ser famoso, nem falo para ser lido.
Eu falo é por ser amado, e escrevo porque gostoso. Minha literatura é feita de excessos — eu sei — mas é sincera, tem cadência, suavidade, juventude, pulsação. Mas até mesmo a sinceridade tem limites.
Não se pode ser sincero além de um ponto.
Como eu ia dizendo.
A vida é um milagre — e não vou agora desperdiçar o meu!
Já fiz uma promessa: Vou sobreviver a todos os meus amores.
Naufragar por causa deles — jamais! Posso até me afundar um dia, quem sabe, mas ao voltar à tona trago nos dentes o punhal do pirata. Afundo-me em nome da liberdade, mas trago depois enrolada na ponta língua a pérola pura, pois fui capaz de morder com doçura a ostra hesitante.
O aventureiro que habita o meu corpo pode até simular um naufrá-gio em teu nome, meu amor.
— Mas nunca quererei te salvar.
Lembro de coisas antigas como se em silêncio as vivesse outra vez. Do que não presta, me esqueço. Sempre. E se minha memória, que sabe das coisas, guarda um fato — por que iria eu jogá-lo fora? Amo só o que acontece e sempre me apaixono pelo ato em si. Sou cúmplice da realidade. Depois de quatro dias falando comigo perco a razão, e a perco de forma profunda, como se fosse perder a vida — só para buscá-la outra vez com amor não sei onde.
E com a certeza de que volta para mim — outra vez.
Falo de mim como falasse de você.
(E fico pensando.)

Minha vida parece a tua, não porque sejam elas iguais, mas pelo fato inegável de que você pensa que vive no espelho. Nem todo espelho reflete a imagem que lhe damos: alguns a engolem, não para consumi-la em fogo, selvagem, voraz, mas sim para poder amá-la escondido, no fundo mais fundo do fundo de si.
O certo é que não sabemos ao certo o que pensa um espelho a teu próprio respeito. Talvez não se enxergue.
Você não se acha cego.
Pois é.

Sabe aqueles dias em que teu peito parece uma Sibéria?
Você olha no espelho da vida, olha fundo, e não vê um ser humano: — vê um palhaço. Nesses dias você tem que reagir. Porque, se não reagir imediatamente, logo, logo, vai olhar no espelho da vida outra vez e terá uma nova surpresa:
— Verá o cadáver de um palhaço!
Não falo isso pra te assustar — quem sou eu pra me ter medo? Sou bom, amável, e não teria coragem de meter medo nem mesmo a mim. Meu maior defeito é talvez ser bom demais.
— Quem sou eu? — você pode se perguntar.
Sou um poeta, um escritor de idéias, bem-sucedido mas não famoso. Escritor de idéias libertárias, eis o que sou. Um apaixonado trapezista louco dando um salto vital no escuro de um circo chamado vida, sem redes de proteção. Porque sempre que ouço a voz de Deus dizendo-me “Salte!” — eu salto.
Começo a ouvi-la de novo, insistente.
A voz de Deus que ouço vem de Mim. Meu coração é que se abre como fosse uma boca — e me conta coisas, segredos, me conta tudo.
A voz de Deus me conta histórias, me acalenta, faz ninar.
E grita comigo, às vezes, que nem agora que grita salte!

Insisto.
Só quem salta inteiro no belo escuro profundo da vida é que pode viver de verdade.

E você — tem saltado muito?
Como vão teus delírios voadores? Como estão os teus amores? E os teus brilhos, tuas dores?
— Como vão tuas misérias e delícias?
Ah, você só quer saber das minhas, é? Deveríamos fazer uma troca, não delas, propriamente — as delícias e as misérias — mas do seu relato apenas. Sei que é difícil pra você abrir o peito assim, à faca, e mostrar-se todo — é muito difícil. Dói, eu sei. Mas o gostoso nesse tipo de dor poética é exatamente isso: Doer em êxtase.
Você nem imagina...
E se você entende — é melhor saltar.
Eu me escrevo, e você se lê. Por que não invertemos os papéis? Eu me mudo em leitor e você fala que escreve. Ah, você só quer me ler? Quer saber o que tenho pra dizer? Saber dos amores que já tive — e gozar com minha boca e minha história, é isso?
Você não vai ficar satisfeito...
Ou você, no fundo, só quer saber das maldades que eu já fiz? Você é leitor do meu romance, ou fiscal do meu prazer? Leitor? Ah, bom. Mas pretende que eu só fale dos pecados que cometo em nome de Deus? Quer saber as razões pelas quais matei a ciumenta? Parece que você só quer ver-me confessando as sujeiras que nem fiz. Você pensa: “será que vou encontrar um cadáver fresco, coberto com jornal de ontem, na próxima linha? Será que o safado vai confessar um crime na próxima página?”
Acho que você não vai ficar satisfeito.
Se foi só por isso que veio me ler, é melhor parar.

Não fui transformado em abismo em vão. Nem sou só um poetinha de meia-tigela — não! Sou safado no sentido de travesso, não de cafajeste. Na piscina, ao lado de musas, sempre me orgulho pelado: a pele é a minha maior proteção. Minha nudez me descobre das vergonhas mais humanas, aquelas profundas, e me cobre de amor e tesão por ela. E por mim.
Não sou criminoso: sou rebelde.
Fui, sou e sempre serei contra os conservadores. Sou revolucionário, amo a vida, a liberdade, o amor, e a loucura. Isso já vem de família. Não é genético, mas é hereditário. Meu bisavô Luiz Marques já era um rebelde: trocou o futuro garantido e certo por um presente gostoso e mais certo ainda. Um belo dia jogou fora o velho baú das verdades antigas, e tomou aquelas decisões que só os grandes homens conseguem tomar:
Montou o cavalo negro do risco absoluto e partiu!
Abandonou tudo para não ter que abandonar sua própria alma na-queles caminhos já percorridos. Ele também já sabia que

O único crime que não tem perdão é desperdiçar a vida.

Não fosse por isso eu não estaria aqui, agora, todo coração, tomando essa taça de vinho vermelho e contando minhas histórias de amor pra você.
Sou portanto bisneto da rebeldia. Bisneto da rebeldia, neto da emo-ção, filho da loucura, irmão do desejo, primo do prazer, amigo da liberdade — e amante de todos os meus amores.
E existo, por incrível que pareça:
No céu da minha boca não há fogos de artifício:
— Só estrelas.

Digo isso e Paritosh me questiona.
— Por que você repete esta página em todos os teus livros?
— Em quase todos. Repito-a para sentir como pulsa o coração do meu leitor. Ela é o portão principal da minha literatura. O leitor tem que abri-lo para entrar nos meus jardins.
— Mas ele pode não gostar de ver, outra vez, o mesmo “portão”.
— E daí? Quero outros leitores. Sei que minha posição é delicada: defendo a mudança, mas me coloco, me distribuo, me espalho por todos os meus livros, falando sobre as mesmas coisas transformadas... Parece contraditório, mas tem que ser assim. Eu sou assim...
— E se o leitor se cansar?
— Busco apenas o leitor incansável. Não quero acomodados tocando com seus olhos as palavras que escrevo.
— Leitor acomodado também compra livro...
— Às vezes. Mas não quero que o leitor comum leia os meus livros. Seria como se me prostituísse, falando de amor e liberdade a quem não posso amar de forma alguma.
“Faz sentido”.
Não sei aonde vamos chegar com essa conversa. Por dentro, no â-mago de mim, sorrio duvidando, mas concordo: até certo ponto, faz senti-do. E Paritosh, um representante da Associação Mundial dos Críticos de Arte, me ataca numa parte sensível:
— Isso repele leitores... Você acha que já os tem muitos?
— Não: são poucos, mas quero tê-los ainda menos.
Só os quero se inteligentes.

Desde o meu segundo livro já dizia: “Se, ao ler esta página, você não conseguir ver a velha senhora pensando na vida, abandonada numa cadeira solitária de balanço à espera do marido que não volta; se você não percebe ali, por perto, netinhos alvoroçados olhando a porteira por onde o avô sumiu; se você não ouvir claramente os cascos do cavalo negro do ousado Luiz Marques chutando pedregulhos numa estradinha de terra — abandone esta leitura agora. Se você não consegue cavalgar a própria imaginação — desista de mim: não escrevo pra você. Se você não consegue nem isso, vá ler Marimbondos de Fogo. Vá ler Paulo Coelho... ou Sidney Sheldon. Mas desista de mim.”

Submeto-me à arbitrariedade do meu bom gosto — e escrevo. Não para que você concorde comigo, mas para transmitir emoções, e para que você pense um pouco sobre a vida que hoje leva. Para que você veja o mundo de outra forma. Escrevo para excitar teu intelecto e abrir teu coração. Nada mais. E se um dia teus neurônios e teu sangue me negarem, nunca mais virei aqui. Nenhum escritor pode ser condutor de almas desgarradas. No máximo, o escritor indica um caminho que pode nos levar ao paraíso da estética. Porém, o escritor só mostra o caminho: não conduz, jamais. Aliás, no fundo, nem mesmo mostra; apenas diz que existe um caminho — talvez. Escrevo, sim, mas para falar de amor e liberdade, poesia e loucuras. A propósito, o título do meu novo livro, que já tem cerca de cem páginas, vai ser “Coisas Que Eu Nunca Disse”.
— OK: vejo uma velha senhora, gorda, como se acorrentada à sua cadeira de balanço... — Paritosh começa dizendo.
— Não disse "gorda" — retruco.
— Mas já reparou que os maridos abandonam mais facilmente as mulheres gordas? — aproveita para defender uma tese.
— Nunca pensei nisso — respondo.
Ele agora está olhando pra minha barriga, e diz:
— Pois pense, meu querido. As gordinhas são abandonadas não por causa da banha: a gordura é só uma conseqüência.
— De excesso de comida — opino.
— Sim, lógico, porém mais do que isso: a gordura demonstra o nível de desleixo que tem por si. Há uma atitude que o gordo assume — por isso engorda. Essa atitude depreciativa perante a vida o torna menor, e a gordura em demasia é um reflexo. Claro que é um processo inconsciente. Talvez, proveniente de alguma somatização.
— Estamos nos afastando do tema — tento voltar.
— Voltemos: quem já leu teus outros livros, já ouviu o galope, viu o cavalo negro, sentiu o cheiro da crina, ouviu os pedregulhos. Por que então repeti-los?
— O barulho dos cascalhos nunca é o mesmo. São sempre outras as pedrinhas que o cavalo chuta, você tem de senti-las diferentes. Temos que galopar a imaginação.
— Se não?! — Paritosh continua contestando.
— Se não, desista de me ler! Nesse caso, minha literatura não foi feita pra você — eu digo, convicto.

Mesmo assim, também me questiono. Porque sempre me questiono, especialmente quando pareço ter certeza de que estou certo. Quanto mais informação você tiver sobre um determinado assunto, mais dúvidas deverá ter a respeito dele. Quanto mais culto você for, mais questionante será!

A certeza absoluta inquestionável é um recurso do imbecil.


Acho que um desgraçado nunca vai ler o que escrevo — e se ler não vai gostar. Infelizes detestam quem fala de prazer, de alegria. Para um escravo emocional, tal assunto é tabu. Para um escravo a liberdade é frescura. Portanto, só falo para espíritos livres.
Só gostará do que escrevo quem já vive de amor. Só esses vão gos-tar do que eu digo. Acontece que um livro jamais será melhor que a biografia do escritor. Nenhuma obra supera a vivência do próprio autor. Literatura sem observação é vazia. Sem experiência a arte é oca.
Nada substitui a vida.
É uma questão de bom senso.
Para Voltaire a coisa mais bem distribuída no mundo é o bom senso: ninguém acha que tem pouco. Nem eu. Nem você, é claro.
Mas, antes dos fatos, não me importa o que se diga deles. Sou até comedido ao contar as aventuras — são muitas, teria de contá-las devagar. Quando chego a mil, perco a conta, começo tudo outra vez. Isso, quando as conto. Mas não conto todas: não sou louco!
Eu gosto mesmo é de viver as aventuras, não de contá-las. E só as conto por precisão, por ofício, por ócio, por amor. Para mostrar a você que é possível viver fundo, viver tanto.
(Tudo de uma vez.)

Morrer é a última coisa que eu quero fazer na vida.

“A esperança é um sonho que caminha”, disse Aristóteles. Eu espe-ro que você perca o medo antes de perder a esperança. Que você mostre o avesso da Pandora ao avesso da caixa, e o avesso de si a si mesmo. Que não se contenha em mostrar só Continente, mostre também o Conteúdo.
Oceânico.
Faça como eu, que me abro todo, que mostro meus avessos, minhas entranhas coloridas e inteiras, exponho-me como doces invertidos num balcão de sacrifícios inocentes. Então, meu interior se agita, cria cora-gem e resolve mostrar seus próprios avessos. As conhecidas entranhas se reviram e se abrem para dentro de si. Descubro que a parte mais profunda de mim é o contrário dos meus avessos, e que o lado de dentro do meu lado de dentro é a fantasia que de amor me veste.
Minha grande inspiração é Henry Miller. Deus e Zorba, em segundo plano. Paritosh, um pouco antes. Pairando agora sobre minha cabeça uma doce ameaça de vida. Sinto-me Dâmocles, a espada — suspensa por um fio de seda — brilha seu fio nesta tarde de sol sobre mim. O vento a balança, eu olho pra cima, começo a sorrir.
Tudo por um fio...
É neste momento — quando confio — é neste exato momento agora que a Vida chega. A vida só chega no exato e justo momento em que temos consciência de que ela está por um fio...
— Só neste momento!
Cabos de aço não conseguem segurar a vida, porque ela não se prende a brutalidades. A linha tem que ser fina, delicada. Há que ser fino para se viver de verdade. A vida não se liga a coisas grossas, densas, brutas. Vista-se de véu para viver de luz. Ou você acha que será possível viver sempre de mortalha? Só falta mesmo ter tesão por escritório!
Fico pensando: será que você sabe quem foi Dâmocles? Vou abrir o Webster na página certa da memória: "Damocles: a courtier forced by Dionysius the Elder, tyrant of Syracuse, to sit under a sword suspensed by a single hair, to demonstrate the precariouness of a king’s fortunes".
Se não entendeu — stop! Melhor parar.
Mas não desista agora, é cedo, você ainda terá tempo. Os saudáveis enlouquecem, os outros ficam por aí — parecendo normais.
Pense nisso.
Os normais aceitam o mundo com o é, e os loucos querem mudá-lo. Por isso o mundo muda só por causa dos loucos. Se todos fossem normais não haveria progresso. Por falar em normais, vou logo dizer algo sobre o casamento, algo que está atravessado na minha garganta.
Nada tenho contra o casamento.
Dos outros.
Como eu já disse acima, há muitas razões para se casar.
Um casamento jamais será opressivo ou torturante — se os casais abdicarem da sua liberdade pessoal. Suprimida esta, preferencialmente de forma consensual, a harmonia se instala. O sentimento de opressão só advirá se pelo menos um dos parceiros continuar amante da liberdade. Afinal, ninguém se casa para ficar mais livre. Seria uma contradição. Nesse sentido, requer-se apenas uma verificação do custo/benefício: quanto perco da minha liberdade pessoal — e quanto ganho em outros campos. Quanto prazer me dá uma possível reclusão. Quanta segurança. Quanta garantia. Quanto sossego. São essas algumas das questões que se podem levantar para entender uma relação de amor.
Toda relação é restritiva — por definição. O que varia é o grau de restrição e os propósitos mútuos dos que se relacionam. Mesmo as relações comerciais são restritivas, posto que fundadas em mútuas concessões. Eu te dou um desconto e você só compra de mim. No casamento ocorre a mesma coisa. Eu tolero a tua cerveja e o futebol, e você não reclama por me ver descabelada. Eu só transo com você, e você não sai com mais ninguém. Você me dá um desconto, que eu te pago à vista. E por aí vai.
É uma troca, simplesmente.
Também influem os objetivos imediatos ou remotos de cada um, além da sua (i) maturidade emocional. Emprego está difícil, vou me casar. Quero ter um filho, e preciso de alguém que o produza, eduque, ou susten-te. Quero sair da casa dos meus pais. Quero morar com meu atual namorado, ou namorada. Quero alguém para ser a projeção da minha mãe. Quero ajudar alguém. Quero que alguém me ajude. Quero ter a chance de exercer minhas ganas autoritárias. Quero constituir uma família. Quero ser respeitável. Quero voltar a ser santa. Quero uma empregada doméstica. Quero seguir a tradição. Enjoei do meu estado civil original. Quero reproduzir a relação dos meus pais, exatamente igual — ou corrigindo-a. Quero mudar de vida. Quero deixar de ser puta. Quero melhorar a vida. To apaixonada. Quero desperdiçar minha vida. Cansei de ser livre. Quero fazer uma grande besteira. Quero fazer uma besteira monumental. Nosso casamento será bem diferente. Quero fazer amor todo dia. Quero ser feliz. Quero engordar. Etc.
Como se vê, razões para casar é o que não falta.
Acontece que.

Um relacionamento amoroso só dá certo — e duuuuuura bastante — quando os dois amantes amam também a liberdade. Ou quando ambos a sacrificam, simultaneamente. Tem que haver um pacto. Pois, se apenas um deles amar realmente a liberdade, a coisa desanda — e a separação é fatal.

Não sei se já disse antes, ou se vou dizer mais tarde:
O casamento é o túmulo do Amor.
Entretanto, e independentemente disso, é ainda o melhor lugar para se criarem os filhos. Se você pretende ter filhos, recomendo o casamento tradicional, porém com altas doses de liberdade, amor e respeito.
Sobre filhos, inclusive aqueles que eu não tive, falarei depois.
Acontece que negar meu potencial é matar-me como ser humano.
Se por acaso eu vivo um dia de rotina, espremo à noite o meu cérebro como quem torce roupa, e não sai nada — nem uma palavra, nem uma gota, nem um pingo, nenhuma emoção.
E meu corpo só consegue adormecer.
Mas quando vivo um dia de aventuras, vivo também uma noite de amor. E meu cérebro, só, sem esforço, produz e me oferece um milhão de palavras, tempestade de desejos e de mel, um livro inteiro se quisesse. E meu corpo — um milhão de orgasmos de uma vez. Só aventuras acumulam as energias de que meu corpo precisa, e minha alma merece.
Então me lembro de Silene, de novo.


A virgem.

Hoje fui à casa dela e encontrei seu pai, um homem simples, simpático, me tratou carinhosamente. Tem uma barbearia. Conversou comigo, sorriu pra mim, parecendo agradecido. Mas se soubesse as coisas que fazemos — eu e sua filhinha —, ele provavelmente me expulsaria de lá. Mas, se soubesse, mesmo, o que eu e Silene estamos fazendo há mais de uma semana; se pudesse saber, mesmo, o tamanho do amor puro que sinto por ela; se soubesse, mesmo, o quanto sua filha é respeitada por mim, em todos os sentidos — me agradeceria mil vezes por segundo. Se o pobre homem soubesse, por exemplo, que a vida sexual da sua filha era um inóspito deserto antes de mim; que ela ainda não havia sido amada de forma alguma por ninguém; que eu a transformo de mulher em musa, diariamente; se ele soubesse quem sou realmente — esse homem simples, religioso, me recomendaria a Deus, e talvez até colocasse uma pequena estátua minha no oratório do seu quarto, para venerar-me todo dia.
Santo Edson!
(E eu agora o respeito como se ele já soubesse quem sou.)
Lembro-me do olhar bondoso que me deu quando fui vê-la, e ela não estava. Simulei que fora entregar um envelope, duas ou três folhas dentro, poemas que escrevi. Para ele, importantes documentos, talvez da escola da filha. Dirigi-me àquele homem com meu olhar ressabiado, confuso, e ele devolveu-me um olhar terno, fraterno, quase angelical.
Fiquei pensando.
Que é com o dinheirinho ganho ali, honestamente, manuseando pentes, escovas e tesouras, que foi comprada aquela camiseta branca de malha que ela ontem usava — e que molhei com saliva na altura dos seios para que os mamilos saltassem. Foi com o esforço de pai que sua mãe comprou aquela calcinha de algodão, macia, fofinha, azul, que ontem tirei puxando-a com meus dentes de amante. Silene senta-se talvez ali naquela cadeira, ao lado da mesa que vejo através da janela, para tomar café com leite toda manhã, pão com manteiga passada por suave mão de mãe. Foi com o amor desse homem que se fez essa musa há mais ou menos dezessete anos.
Por isso, só posso mesmo amá-la tanto.
É para mim uma honra, Silene, poder te amar da forma como te amo hoje. Tanto, que você não sabe e jamais venha a saber. Nem saberá esse homem tão puro, teu pai, de quem não sei ainda sequer o seu nome. Então, numa tarde de sol, vou me sentar na velha cadeira azul do salão, e pedir-lhe, "por favor", que me raspe a barba rala e cinza de dois dias, essa amanhecida e poética barba de cafajeste.
Vou olhar-me bem de frente naquele espelho oxidado, cheio de manchas nos cantos, e que tem moldura de madeira comida por anos e cupins. Vou olhar-me firme no espelho, e supor-me um deus arrependido.
(Arrependido — mas sincero.)
Enquanto ele afia a navalha na tira de couro pendurada no braço de ferro da cadeira Ferrante, vou esboçar um sorriso ao canalha que pareço que sou, lá no espelho — e respirar fundo. (Sinto-me Sófocles com dor de barriga: “A justiça é às vezes inoportuna...”) E quando estiver com meu rosto cheio de creme, branco como palhaço húngaro em corda bamba; quando ele levantar a navalha com sua mão direita, naquele gesto delicado e profissional de um homem honrado que sabe o que faz; quando ele colocar o indicador de sua mão esquerda no meu queixo para esticar um pouco a pele bronzeada — quando for este preciso momento, vou lhe dizer, com poesia, com cuidado:
— Senhor, fui eu que tirei a virgindade da sua filha...
Sei que vai parar seu gesto ao meio.
Ficarei imóvel também, aguardando a decisão da suprema corte que lhe habita o coração.
(Que lhe agita o coração.)
Mil dragões e anjos em luta no labirinto em que sua cabeça se transforma. Verei no espelho o movimento da sua garganta engolindo em seco alguma coisa. Vou ver tudo o que for possível ser visto no instante que pode ser último. Tentarei ver o brilho suspenso da velha navalha refletido no espelho, como farol de uma ilha perdida orientando náufragos de um amor que sobe à tona. Sabemos que não fui eu que lhe tirei a virgindade, Silene, mas é como se fosse. Hoje eu preciso deflorar uma história.
E continuo:
— Foi ontem, Senhor, no luar prateado de ontem à noite, as estrelas por testemunhas — foi ontem que amei sua filha...
(Esse, o momento!)
Esse é o absoluto momento que eu quero viver.
O fio da navalha!
Um momento em que minha vida estará pulsando nas mãos indecisas de outra pessoa, nas mãos desse homem que é o pai da inocente futura mulher que eu hoje mais amo no mundo. E que talvez não compreenda essa minha atitude.
— Por que você diz isso agora? — perguntará.
— Para se fazer justiça, meu senhor.
E ele ali, meio perplexo, a navalha meio cega suspensa por meus o-lhos, seu indicador apontando um lugar imaginário no meu queixo branco de espuma, a jugular clamando gumes.
Um mosquito pousa na minha testa.
O vento balança um bilhetinho pregado com durex na moldura do velho espelho oxidado, com a tinta descascando.
Um cachorro late lá na esquina.
Uma criança passa correndo atrás de um gato.
Vejo que a navalha não tem fio: tem uma linha de raciocínio.
Respiro cuidadoso, como Bergman em noite de verão me dirigindo. Crepitam gravetos e coivaras no meu peito. O pulmão direito agora muda de lugar e o esquerdo se transforma em suspirante coração.
Continuo dizendo, calmo:
— Ontem à noite Silene não foi à escola: fomos à minha casa. Ela aceitou meu convite pra jantar. Tomamos vinho, olhamos a lua, ouvimos música, dançamos...
Em voz baixa, vou lhe dando mais detalhes.
(Conto tudo.)
É um duelo informal de cavalheiros: eu entro com a história — ele, com o silêncio. Eu entro com a garganta e as emoções — ele, com a faca e o risco. Eu entro com a dor, ele, com a filha.
Sinto que me olha sem piscar.
Mudo.
Minhas mãos pousadas no descanso da cadeira.
Esse é o momento.
(Vai ser assim!)
Porque o Paraíso não pode ser lugar de gente morta.
Há que ter risco.
— Risco, navalha, tempo, garganta, mulher, emoção.

Tudo por um fio...




Mas agora uma garrafa de vinho pela metade, rosa vermelha ansiosa por mim, três ou quatro velas azuis em castiçais de prata espalhados pela sala, uma penumbra gostosa onde sombras delicadas dançam por si mesmas, o Bolero de Ravel crescendo em todos os sentidos no meu peito apaixonado, uma brisa noturna e encantada entrando pelas portas e janelas. Mistérios no ar, desejos, também. Às vezes, silêncio: e Ravel retorna.
Espero uma das outras minhas deliciosas amadas.
Se ela chega, agradeço a Deus por ter chegado, e nos amamos da forma mais gostosa. E se não chega, agradeço a Deus por não ter vindo, e continuo a me amar da mesma forma. Não faz diferença se danço com você, ou se sozinho: amo as duas coisas, e a dança sempre acontece primeiro dentro de mim. No fundo, sempre agradeço a Deus por você vir, e agradeço mais ainda se você some por uns tempos. Quando você desaparece, meu amor, o espaço que você deixa é enorme: e então procuro ocupá-lo de modo diferente, pois cabem dez outras dentro dele...
Olho para meu corpo como se olhasse a própria Natureza. Um pedaço dela — o mais importante, concluo. Quando passo as mãos em mim, é como estivesse refinando uma escultura, cobrindo-a de amor e ternura. Eu, meu alimento!
Quando me toco ouço música.
Vibrante.


Não tenho uma vida só: tenho muitas. Todo dia, ao me levantar, escolho uma delas pra viver — e são todas perfeitas, todas livres. À noite, quando venho dormir após extensa jornada de amor, guardo em mim essa vida que hoje vivi, e vivo-a de novo.
Sou garimpeiro de sonhos remexendo cascalhos de amor.
Se vou mudar, nem Deus sabe.
Eu acho que sim.
— Se você não acredita, é melhor parar.
(...)
Eu me espanto ao ver que essas coisas que se transformaram em mim já existiam — separadas — e só se uniram para formar-me. E que outras continuam vindo, para tornarem-se-me. Que inteligência as conduz até mim? Por que será que me escolhem? Ou por que é talvez que aceitam o convite para que venham a constituir-me dessa forma tão gloriosa?
Continuo perguntando como se fosse alpinista:
— Posso ver tua pequenina montanha, meu amor?
— Sim — ela responde.
"Eu sempre digo sim, quando você me fala de amor".
Então levanto delicado o azul de sua saia, clarinho, passo as mãos por suas coxas, sinto a penugem que lhe cobre a pele lisinha, firme, e vou subindo, subindo, subindo. A calcinha é branca: surpresa para mim. Adoro surpresas. Imaginava que fosse bege. (Essa é uma das vantagens dos amores passageiros: a gente nunca sabe a cor da calcinha que elas vestem.) E vou subindo mais ainda minhas mãos nessa escultura de carne, sangue, tesão, surpresa e arrepios.
Sussurro: — Que maravilha...
E ela, como penteasse delicada os meus cabelos com os próprios dedos abertos, sorrindo, sentada na cadeira branca:
— Você é o amor.
Ela não disse: “você é um amor”.
Disse: Você é o amor — e frisa (demoradamente) o artigo definido, masculino, singular.
Mas não será agora que vou lhe ver a deliciosa colina.
Vou deixar para depois, outro dia, quem sabe. Talvez nunca. A mim me interessa mais a permissão que ela deu. Basta. Eu sei que amanhã talvez, na cama, numa posição mais confortável, vou lhe tirar a calcinha puxando-a com meus lábios evidentes. E vou então poder observar-lhe o clitóris, sua cor, textura, tamanho, volume, gostosura, freqüência, pulsações por segundo, essas coisas.
Amanhã... talvez.
Pois eu nunca tenho pressa.
Hoje só quero tocar o clitóris da própria vida.
Não penduro na parede da sala as fotos dos meus amores como fossem troféus de caça. Porque são elas as feras que me caçam, me conquistam, me dominam, mordem, lambem, acariciam, me amam. Só não permito que se acasalem comigo. Assim como pintores precisam de modelos, também escrevo melhor quando as tenho à vista, nuas, puras, belas — todas. Às vezes, acho que já não mais escreverei coisas tão novas, mas logo em seguida outras idéias fervilham na minha cabeça flamejante; no coração, sentidos pululam como rãs embriagadas de amor; nos olhos, imagens dançam coreografias revolucionárias criadas por Martha Graham; de minhas línguas surgem novas palavras grávidas de encantos que se dão à luz.
Então escrevo, escrevo de novo. E de novo de novo.
— Meu único princípio é não ter fim.
E as palavras se oferecem prostitutas para mim.
Caem no meu colo, lúbricas, doces, inocentes. Caem na minha boca, na minha língua portuguesa — e em todas as outras. Se derretem por mim quando preciso delas quentes para falar de amor, e vêm geladas se preciso contar tristezas. As palavras, todas, se oferecem para mim, obscenas e santíssimas ao mesmo tempo.
Divinas e profanas — como um falo.
Então as escrevo, profundas, belas, insensatas, radicais.
Por isso há tanto lirismo na minha obscenidade.
Tanta realidade na minha ficção.
E tanto amor nos meus amores.


A história que vou contar é a mais pura das minhas verdades. Vou relatar o que vi com meus olhos do amor, descrever como tudo aconteceu. Se algo fugir do real, será mais por falta de lembrança do que de caráter. Sou um anarquista lúdico. Anarxista. Alguns dias por semana, algumas horas por dia, represento um papel: me transformo em operário, chego manso ao escritório, cabisbaixo, feito um idiota. E represento tão bem esse papel no palco da hipocrisia cotidiana, que as pessoas pensam que sou mesmo responsável.
Mas, por dentro, continuo rindo de tudo — e de todos.
Portanto, não me peçam para sofrer: não tenho complexo de mártir. Sou só um santo louco, gozador, inconsequente, com enorme vocação para ser um Deus-palhaço — nada mais.
Na verdade, até que sou bastante responsável.
(Só que não levo a responsabilidade muito a sério.)
Deus adora o porra-louca, por isso lhe dá tanta alegria, tanta energia. E Deus não pode amar os que são sérios — e por isso os faz tão tristes. Deus gosta muito de brincar.
O próprio Mundo é seu maior brinquedo.
Lembre-se: quanto mais sério, mais longe de Deus!
Fico pensando:
Se eu tivesse aprendido uma palavra nova por dia, desde que nasci, não saberia hoje nem 20.000 palavras diferentes. Como vemos, não basta aprender apenas uma palavra por dia. Um escritor deve saber pelo menos 50.000 palavras na ponta da língua em que escreve. Para um idiota, bastam mil. Chefe de escritório se vira com trezentas. Mas um pedreiro deve saber cerca de 3.000 — incluindo-se "tijolo, pedra, areia, cascalho, marmita e Corinthians". Shakespeare sabia apenas 5.000 palavras diferentes — mas eram todas as que existiam no inglês daquela época.
E você, está pensando em ir além?
Acho que o meu além nunca vai além de mim.
Por isso ainda não decidi a quem vou deixar o meu além.
No Upanishad, escrito talvez no século VII a.C., lemos que Além é "aquilo que as palavras e os pensamentos não alcançam". O que não foi, de nenhuma forma, nomeado — o transcendente.

Quero sempre o novo absoluto.

Enquanto vocês engessam seus braços fechados, procuro abrir mais ainda meus braços abertos de amor. Só me dão prazer amizades eróticas, por isso tenho tantas amigas. Amizades masculinas, machas, não sensuais — com elas só desperdiço meu tempo. Tenho pouco interesse em ser amigo de alguém que não posso amar.
É só disso que trato nos meus livros. Da Gramática do Amor.
Le livre de la Liberté!
Se você não gosta dessas coisas não será nunca meu leitor.
Minha literatura propõe uma prática de Liberdade.
Eu só falo de amor.
— De amor livre!
E se você não gosta disso — é melhor começar a gostar.
(...)
O amor tem que ser livre em todos os sentidos. Mas para você é impossível; você é contra o amor livre.
De novo te pergunto:

— Se o amor não pode ser livre, como deve ser então: amor preso? Amor acorrentado, encarcerado, sufocado?

(Seria contraditório.)

Quando eu era pequeno brincávamos de ver nuvens no céu de Srinagar. Meus amiguinhos só viam bois, cavalos, elefantes, mangueiras, copos de leite. Mas eu, nas mesmas nuvens, via elefantes enfeitados com safiras dançando em tamboretes de ouro em picadeiro de circo; via Bonaparte empunhando sabres num cavalo branco; via uma mulher descalça, vestidinho de chita, carregando um pote de água pura na cabeça; via um miúra com quatro banderillas espetadas no lombo ensanguentado; via a Vênus de Milo de ponta-cabeça... Eu via coisas que os outros não viam. Até hoje ainda olho para o céu e vejo coisas que nem posso contar, de tão lindas, encantadas — maravilhas. Vocês não iriam mesmo acreditar.
(...)


Duas coisas são básicas na formação do ser humano: pensar rápido e enganar autoridades. Como eu era pequeno por fora, fisicamente fraco, economicamente dependente, e tinha pai autoritário, fui obrigado a pôr asas no meu cérebro — e aprender a jogar. Já vem daquela época esse meu poder de enganar “autoridades”. Do inspetor de alunos ao juiz da moral; do síndico do meu prédio até a polícia rodoviária, passando pelo padre e pela zelosa mãe de uma lolita.
Engano todos.
Engano até mesmo essa ciumenta possessiva que dorme hoje ao meu lado e que pensa que é minha dona. E se eu tivesse patrão, chefe, professor — enganaria os três.
Mas hoje não tenho nada a esconder.
Até teria, se fosse medroso.
Exceto uma vida livre em todos os sentidos, nada que me obrigue a receios. Uma adolescente aqui, outra acolá; um bacanal de vez em quando, vinho, flores. E literatura. E fazer amor com duas mulheres ao mesmo tempo, também de vez em quando. Só isso. Nada a esconder, tudo declarado: não sou gay, não sou ladrão, não uso drogas, não sou judeu, não sou nazista, não sou pobre, não sou rico, não sou muito velho, não sou muito feio, não tenho muitas dívidas, não sou muito preto, não como muitas criancinhas — não sou muito burro. Nem muito comunista sou mais. E vivo extremamente bem — na praia. No sol, descoberto, nada a esconder.
Vivo como rei, mas nem sempre foi assim.
Quando cheguei a São Paulo eu era pobre — muito.
E pobre vive fazendo conta só pra ver se o dinheiro estica. Eu man-tinha um rigoroso diário financeiro, com letras minúsculas, um personal cashflow. Tenho vontade de rever uma daquelas fichinhas coloridas, caprichadas, cuidadosamente guardadas na carteira, onde eu descrevia o que gastei e de que forma: guaraná Antarctica, pipoca com queijo na Filosofia, duas passagens de ônibus, um jornal, duas entradas no Belas Artes, um chocolate, pizza brotinho na madrugada Xangai do Parque D. Pedro, um sabonete Lux, O Grau Zero da Escritura no sebo...
Era uma pobreza tão rica!
Só lamento ter perdido as "Recordações da Casa dos Mortos" porque o dinheiro não deu. Fiquei com o livro na mão quase uma hora, esperando acontecer um milagre na Avenida São João. Depois fui dormir com Dostoievski, imaginando o seu romance nos meus braços. Naquela noite, meu quarto na pensão parecia uma Sibéria, e eu só tinha um corta-febre me cobrindo de frio e de agosto.
Ou seja: nada a esconder.
Claro que essa pobreza, expressa na falta de dinheiro e cobertores, era relativa, e se deveu ao meu orgulho. Os seis primeiros meses em São Paulo foram uma festa. Restaurantes, teatros, cinemas e passeios. Aconte-ce que em julho o dinheiro que eu havia trazido acabou. E você acha que eu iria me humilhar, pedindo mais ao meu pai? Jamais. Passei fome, cheguei a roubar sabão em pó para lavar minha roupa, nos fundos de uma pensão japonesa. Claro que às vezes senti saudades do restaurante do meu pai, onde eu comia picanhas no almoço e na janta. De noite, em agosto, tremendo de frio, eu me lembrava dos cinqüenta cobertores que tínhamos em casa. Mas eu sabia que precisava, e iria, vencer sozinho.
E a vida foi o meu Mestre.
A vida e o Oswaldo Porchat, que era então meu professor de Lógica na USP. Um dia ele nos disse que sem Lógica não haveria computação, e esta já era a ciência do futuro. Na mesma noite, vindo mais cedo, passei na livraria do Manuel, na Avenida São João, onde roubei um livro de programação e análise de sistemas. Em duas madrugadas, aprendi aquilo que eu supunha ser tudo a respeito. Mas que foi a base para um curso que fiz em seguida, no qual fui aclamado como o melhor. Seis meses depois, meu salário foi às nuvens. E a pobreza nunca mais chegou perto de mim.
Todas essas coisas eu contei no livro Teoria do Acaso.
Portanto, se você quer mesmo me criticar, vai ter que esperar.

Sempre que não estou construindo pirâmides, eu faço amor. Das 24 horas do dia, reservo algumas. Não são muitas mas são tantas, tão intensas! Nessas horas só faço amor, com toda a delicadeza que a expressão comporta. E de uma forma pura, inocente, quase religiosa. Nessas horas eu amo. Só isso: amo. Depois tomo um vinho, rouge, sossegado, o leão que trago no peito repousa, ronrona, resfolga. E me sinto bem. Se você não ama todo dia, como amo, nem toma o vinho que eu tomo, o problema não é meu. Só quero que você viva a vida — se é que podemos chamar de vida essa tua indecente ausência de amor. E deixe que eu viva a minha — só!
(Cada um na sua.)
Se você não concorda, é melhor fazer outra coisa.

Eu prefiro o cume, o pico, porque aqui não tem fila nem pressa, não tem ajuntamento, empurra-empurra, confusão. Prefiro o cume porque aqui ninguém me aporrinha, ninguém me pressiona, nem me pede autógrafo, nem me enche o saco. Prefiro o cume, o píncaro, porque é só aqui que eu sei viver. Nasci para o pináculo. Nasci para o auge.
Portanto, cada um na sua — sempre.
Se você não concorda, etc.
Aliás, será que você me entende?

Quando eu digo “Saltar no belo escuro profundo da Vida” tem gente que pensa que é para baixo! Ora, eu me refiro a um salto para cima. O salto mais profundo é o que damos para cima!
Por falar em salto, Fernanda hoje beijou-me os pés. Mil beijos cândidos, lúbricos, a língua dançante, cobra vermelha entre os meus dedos, todos explodindo de alegria. Agora sei o que sentia Jesus quando chegava a prometer até o céu às mulheres que Lhe beijavam os pés. Agora eu sei! Jesus, por que você demorou tanto tempo para mostrar-me essa menina e Suas coisas? Mas Deus agora me veio de ouro em fernanda pessoa.
Assim como Zorba, o grego, eu vivo no paraíso.
Se o paraíso for só para depois da minha morte, não me interessa. Como disse Zorba, o Buda, cada um procura (ou constrói) seu próprio paraíso: alguns o transformam num monte de garrafas de cerveja; outros, em igreja evangélica; outros ainda, em saldo bancário. Nem me refiro a paraíso fiscal. Eu, como poeta que sou, tenho assim meu paraíso: uma bela tarde ensolarada, brisa delicada me tocando as faces, gostosuras preenchendo meus olhares, e ao meu lado o amor que eu agora esteja amando.
E mais duas ou três mulheres meninas me beijando os pés.
Só isso...
— É assim meu paraíso.
Por isso estou lançando hoje uma campanha. Será a “Campanha de Preservação da Natureza”. Da minha natureza.
Nunca mais forçarei a Minha Própria Natureza!


Nesta sociedade em que vivemos, quase todos forçam sua própria natureza. Aqui, são cinco as instâncias principais que nos oprimem. Algumas nos oprimem por ignorância ou tradição; outras, por sadismo ou interesse; e outras nos oprimem simplesmente por "amor" — ou por um absurdo desejo de nos salvar à força. Mas todas só querem é conservar o mundo do jeito que está. Porque padecem de normalidade, e pretendem matar esses belos sonhos de liberdade que trazemos no peito. Só querem manter-nos a ferros e veludos — e com as devidas coleiras e algemas. Em português, essas "coisas" começam com a letra P: os pais, o pastor, os professores, a polícia e o patrão. Se você não se livrar logo de todos esses pês, e de sua influência perniciosa e opressora, vai provavelmente segui-los de cabeça baixa pelo resto da vida — e ficar igualzinho a eles.
(...)


Sou amigo até das feias, mas das belas, sou mais. Quando olho uma bela mulher com olhos de amigo, sinto por cima dos ombros o amante à espera de uma chance. À primeira vacilada, o amante que mora em mim ataca. Com delicadeza, mas ataca. Por isso, menina, não ligue quando pouso minhas mãos em tuas coxas: não quero mais nada. Mas o amante em mim te observa, te foca. O amante em mim te lambe com a língua do sonho, e te vê com os olhos da alma. E aguarda o momento, o mágico momento em que, felino, vai tocar o teu sexo com poesia e tesão.
— Respeitosamente!
Porque o instante de uma coisa não a precede. O momento de um fato não chega antes dele mesmo. Antes do caos, tem que haver uma desordem. Meus amores são todos turbulentos. Parecem calmos por fora, mas por dentro estão fervendo. Mesmo quando tudo parece que repousa, a pele ainda não: seu arrepio não se cansa.
A coisa mais profunda no corpo humano é tesão à flor da pele.

Eu troco alegria por entusiasmo — e vice-versa.
Fora disso, não conte comigo.

Escravo por um dia.
Um dia desses vou fingir que sou normal.
Vou comprar um despertadorzinho de plástico, regulá-lo para que toque às sete e quinze da manhã, e acordarei sobressaltado. Meu coração vai bater com força nos meus desejos. Vou virar-me de lado, fazer de conta que reclamo da vida, mostrar-me sonolento — mas pularei da cama como se fosse um autômato desesperado. Vou tirar até a remela dos olhos, que é pra dar um tom. Fazer tudo com pressa: escova, pasta, banho, pente, sabão, creme de barba. Vestir-me, tomar café, abrir a porta, fechar, sair — tudo correndo. Terei hoje uma missão extraordinária:
— Foder-me.
Desperdiçar minha vida.
Prostituir-me em troca de um salário ridículo.
(Todo salário — se não for fantástico — é ridículo).
Vou trocar um pouco de vida por um pouco de morte.
E à noite, quando chegar em casa, vou ligar a tv pra ver o que perdi. Vou aguardar o jantarzinho que não vem. Vou até esquecer-me de beijar essa esposa que nem tenho. Dizer que não posso brincar com o filho imaginário, porque meu jornal é "indispensável". Vou sentir-me um escravo. Escravo e estúpido. Porque, antes de ser normal, antes de bater cartão de ponto, antes de escolher um chefe, antes de se casar, antes de assassinar a tua própria liberdade — você tem que ser essas duas coisas, simultaneamente: Estúpido e escravo.
Felizmente, minha missão extraordinária vai durar um dia. Só um dia! Porque, fosse para sempre, aí é que eu tava fodido mesmo!
(...)


O filósofo, o poeta, o artista — nossa função é saltar barreiras, subir à tona, transpor obstáculos, desbravar caminhos, quebrar ícones da moral, fulminar a hipocrisia da sociedade, melhorar a vida, mudar o mundo. O poeta, o artista, o filósofo, o cientista, o escritor — somos a vanguarda da História. Somos líderes porque não podemos ser outra coisa. Em nós, razão e loucura disputam corrida. A razão ganha todas, mas num lindo gesto de grandeza cede sempre o troféu à loucura.

Pois é.
Qualquer coisa que digo pode estar na primeira página, porque tudo tem verdade que lhe sustenta. Até aquilo que nego pode às vezes ser verdade. E quando nego, também o faço porque creio. Assim como afirmo por amor e doçura, não nego com segundas intenções. Mesmo quando falo de mim penso no outro, no que representa para si — e para aquele que pensa ser. Quando digo "representa" não penso só em significância, mas também em teatro, jogo, simulação. Nem tudo o que significa diz alguma coisa — nos iludimos às vezes com aquilo que é real. Fala não se confunde com voz, aquela é mais profunda, tem mais cor, mais peso, mais volume.
Tudo neste livro merece ficar na página um.
Não dá pra se enforcar com laço de cordinhas vocais. Nem todo nó na garganta pode ser desatado. Talvez seja melhor engoli-lo do jeito que está, pois é melhor digerir o que nos sufoca e é mais forte que nós. Então penso em Nietzsche. “Não existem verdades definitivas”. O que existem são interpretações sobre a realidade, determinadas pelo ponto de vista e pela capacidade intelectual do jacaré que as propõe.
(...)
E o sítio lá no sul do Paraná me volta sempre ao coração.
(...)
Portanto, aproveite-me, tente-me, prove-me.
Sou filho do que há de melhor.
De manhã, não fico ruminando o luar que já se foi. Antes do primeiro gole de café, limpo o gostinho madrugante que minha boca possa ainda estar sentindo. Não me atenho a coisas que passaram, não me ligo a cadáveres de nada, o que morre não me encanta, eu me ocupo só do agora.
Eu amo o agora.
— Só.

E se você não ainda sabe a diferença entre Minalba e Perrier, vai ter que ler este livro umas quatro ou cinco vezes. Mas esta frase eu só vou escrevê-la daqui a uns dez anos, quando estiver de novo em Bilbao, tomando um Vino Crianza que me custou a bagatela de oito euros.

Portanto, "dá-me mais um tempo, Demônio: ainda não caiu o último grão do meu relógio de areia". Busque-me mais tarde, volte depois, porque agora estou amando como Deus, ainda conquistando minha amada imortal. Não me interrompa esse último ato, a taça de cristal da minha vida transborda de amor e prazer. Quem sorve esse néctar é a escancarada boca gulosa da liberdade absoluta. Para compor esse quadro com harmonia, cadência e sorriso, você tem que dançar comigo a dança livre da alegria pura.
A vida é uma festa — em todos os sentidos.
Portanto, chega de médio, de pouco, de medo, de escuro.
Viva a cor, viva a coragem viva!
Paritosh, ironicamente, um dia sugeriu-me um absurdo:
— Se gosta tanto de coisas novas, Edson, case-se, tenha um ou dois filhos — e você viverá uma experiência nova.
Ao que respondi, lamentando esse “conselho”:
— Eu amo o novo, mas só o novo que não suprime a possibilidade do novo novo. Se um novo por acaso traz consigo o germe que tenta torná-lo perpétuo, e de algum modo impõe certas exclusividades não naturais, ainda que delicadas e ainda que passageiras, fujo dele, como Deus foge da cruz. Não posso, jamais, amar o novo que vai me impedir novos amores. Por que razão fecharia uma situação de futuro? Como poderia eu amar uma coisa que logo logo vai acabar atrapalhando meu amor por todas as outras? Nesse caso, trocar o todo pela parte é uma demonstração de burrice!


Minha descendência não está assegurada. Ao contrário: acabo-me em mim — para sempre. Não continuo, não me prolongo, não me estico, nem me desdobro: quando me for, irei inteiro — todo. Não deixarei uma gota sequer do meu sangue perdida por aí. De mim nada ficará, exceto as palavras que falei, os livros que escrevi, e todos os amigos e amores que amei — a minha historia e as minhas histórias: só isso. Filhos, netos, bisne-tos: nunca os terei. Nunca. Jamais serei proletário!
— Felizmente.
(Fico sonhando.)
E são sempre coloridos os meus sonhos. Mesmo quando sonho em preto-e-branco, vem Van Gogh e os transforma. Às vezes, vem Cézane, outras vezes, correndo desde Papeete, desde a Patagônia, vem aqui o Paul Gauguin me socorrer. Pinta as mulheres minhas como se suas, leva algumas com ele, embora. E me lança olhares perguntantes ao sair.
Respondo sempre: — Pourquoi pas?!
Dali também costuma vir aqui. É o mais irreverente: às vezes, as ama antes mesmo de pintá-las, outras vezes, nem lhes deixa secar direito, e se lambuza em tinta fresca. Gauguin é deles o mais louco. Só Van Gogh é mais contido, mas sempre ao terminar beija a orelha delas. Já Picasso é cuidadoso: as mais feias ele apaga e diz apenas:
— Essas não têm conserto, Edson.
(Não era Picasso que usava os pincéis uma só vez, “como se fossem mulheres”?)
Algumas das "pintadas" se misturam às coloridas de verdade, e de-pois ficam rondando pela casa quando me acordo. Mas todas são originais, e amo-as até que mais não possa.
Ou até que a casca caia.
Eu também só escrevo a cores — vocês não veem?
Se não as veem — desistam.
Em terra de rei quem tem um olho só é cego!
Minha mãe, meu pai, minha história e meus amores me deram aquilo que eu tenho de mais valioso: ou seja, a Vida. A forma de geri-la, contudo, é de minha inteira responsabilidade. Sou o gerente da minha vida, “o capitão da minha alma”, o general do meu mundo.
Sou meu próprio diretor!
O autor exclusivo dos caminhos que percorro.
Não sou como Joaquim, meu avô paterno, que era carroceiro por profissão. Não o conheci porque ficou louco bem antes de mim. Todos os dias ele ia à estação ferroviária com a esperança de fazer carreto, um servicinho qualquer — para salvar o leite das crianças. E todo dia, isso era sagrado, trazia alguma coisa para casa, embrulhada geralmente num paninho branco de saco de açúcar. O coitado era tão humilde que não posso me lembrar dele sem que chore.
Era assim: toda segunda-feira ele trazia uma latinha de massa de tomate Elefante; na terça, um pacotinho de macarrão; na quarta, cem gramas de queijo ralado; na quinta, quilo e meio de tomates bem maduros; na sexta, lembrancinha para os filhos, um doce, umas balas; no sábado, a garrafa de vinho tinto, daqueles de barril — e estava então completa a querida macarronada do domingo, ao lado dos filhos e da mulher que ele amava, Maria.
Era a sua maior alegria...
Depois, anos mais tarde, doente, chorando, tremendo de frio, ele foi abandonado pelos próprios irmãos na porta de um hospício em ruínas, na cidade de Franco da Rocha, SP. O nome dele era Joaquim dos Santos. Bebia, sim, mas não era um pau-d’água. E talvez o maior erro da sua vida foi ter permitido que outros tomassem decisões em seu nome.
Enlouqueceu do lado errado.
(...)


Se você estiver doente, carente, ou à beira da morte, nem venha me ver. Nesta casa não tenho remédios. Aqui se troca entusiasmo por alegria, ou vice-versa. Eu não tenho aspirina, novalgina, dipirona ou anadores. Aqui — só tenho abraços, estrelas e flores, vinho, música e amores!
Fico pensando em inglês, because My Joyce Will Go Ann.
Outono, sábado, 22 horas, 51 minutos, 17 de abril, a pressão atmosférica ao nível do Mar Azul do Guarujá é de 759 mmHg. Ao meu lado, uma prova de que a Natureza pode às vezes ser perfeita. Peso: 49,9kg; altura: 161 cm; pressão arterial máxima sistólica: 118 mmHg; mínima diastólica: 68 mmHg. Pulso: 92 por minuto. Idade: treze. Nome: Joyce Ann.
Saudável, assustada, inocente, e lolita — naturalmente.
Um pouco mais tarde, olhos fechados, a Musa torna o começo da madrugada mais brilhante que aurora trazida por Lúcifer. Sua mãe, cansada de tanto nos cuidar, vai dormir, deixando a incumbência para Simone, irmã mais velha — que meia hora depois dormiu de roupa e tudo no sofá. Ou seja, Deus, em sua magnífica bondade, foi preparando o mundo para que só nós dois ficássemos acordados esta noite. Deitada com a cabeça em minhas pernas, mãos infinitamente dadas, após nelas ter passado creme suíço Collagen Elastin, ouvíamos o disco que ela trouxera: Celine Dion. A música era My Heart Will Go On — repetindo por mais de vinte vezes.
Luzes apagadas, o controle remoto nas mãos, para que a música siga os desejos de Deus. Um pé esquerdo de sandália preta na cabeça da estátua argentina que tenho na sala. O fascículo com a biografia de Delacroix, que havia antes lido para ela, aberto na página em que a Liberdade conduz o povo. Detalhes que hoje moram no meu peito. Momentos que ainda me parecem o resumo dos últimos cinco mil anos de história. Quem nunca viveu o amor com tal intensidade não sabe o que está perdendo. Aciono então o controle remoto para Celine cantar Immortality para nós, e aciono o controle imediato para tocar minha vida:
— Posso tocar teu coração, Joyce Ann?
— Sim...
A resposta veio rápida, minha mão direita saltou os milímetros que a separavam do peitinho-coração de Joyce Ann. É a segunda vez em minha vida que toco seu corpo dessa forma, e meus gestos, delicados, serão inesquecíveis para mim. Sei que não devo avançar demais, porém algo mais forte que a razão agora me impele, firme, e determinado.
Então lhe digo: — Meus dedos querem atravessar o tecido da blusa e tocar tua pele ao vivo, Joyce Ann. Posso!?
Ela sorri, esconde o rosto com uma inocência excitante nunca antes vista por mim, e diz, sussurrando: — Tenho vergonha...
Não era um sim, nem era não, mas a manifestação de um pequeno temor, e grande desejo, ao mesmo tempo. Joyce Ann apertou-me o pulso e fez com que eu sentisse um mamilo pronunciado, espetando a palma da minha mão. Então larga meu pulso, suspira, sinto tesão e dúvidas — simultâneas. Devo enfiar meus dedos ousados pelo decote inocente, ou procurar outro caminho mais discreto? Devo orientar as circunstâncias, ou jogar-me de cabeça dentro delas? Devo jogar-me como se eu fosse um jogo, ou como se fosse um brinquedo? Enquanto me decido, me questiono. Minha mão, delicada e cuidadosa, em minúsculos movimentos circulares, dançando sobre o mamilo durinho, como um prato de porcelana chinesa girando na pontinha da vareta de um malabarista apaixonado.
Não era um sim, nem era um não...
Há duas horas que meu sexo deliciosamente excitado me aponta um caminho como se fosse uma seta, mas resolvo não segui-lo. O caminho deve ser longo para que eu possa percorrê-lo passo a passo. Step by step. Decido-me deixar minha mão onde está: no máximo, em todos os sentidos.
— Não será hoje!
Celine Dion continua "talking about love", e Joyce Ann começa a deixar de responder, sua cabeça pende ainda mais, e uma coisa chamada ternura se apossa de mim. Ajeitei sobre ela o acolchoado que já nos prote-gia, e fiquei mais duas ou três horas velando seu sono, ouvindo a faixa nove: "Miles To Go (Before I Sleep)”. Velando seu sono — e tentando acalmar meus instintos, enquanto vasculhava a memória em busca de outros momentos iguais a este.
(Não encontrei nenhum parecido).
Ela dormia criança — bem solta, entregue a si mesma, pura, a cabeça repousando no meu colo inocente, confiante. Como um quadro de Klimt, especialmente o Retrato de Mada Primavesi — Joyce Ann requer demorada contemplação. O tempo foi passando, veloz, e quando meu próprio sono começou de madrugada a derrubar-me sobre ela, me lembrei de Kundera. Tento acordá-la, em vão, e há cabelos prisioneiros no meu zíper, indicando-me sonhos que imagino agora ter tido. Levo-a para sua cama, cuidadosamente, carregando-a em meus braços de amor, como carregasse a mais sustentável das levezas de um ser perfeito — 49,9 kg de gostosura absoluta, sem um grama de gordura.
(Não é preciso sentir mais nada.)
Agora, três anos depois, toda noite acordo cedo, madrugando. Alguns chamam de “insônia” esse período de vigília noturna. Mas meu caso é diferente: são os Deuses que me acordam toda noite para que eu pense em nome Deles. Então, antes de fechar este capítulo, a divina voz me diz: “Mesmo à beira do abismo — dançar, dançar, dançar...”
E se você não gosta de Nietzsche é melhor parar de dançar.
(...)
Minha mãe, dizendo o que sentiu ao lado do caixão do marido, que por acaso era meu pai: "Eu só tinha medo de que não chorasse. Depois que chorei, foi como se cumprisse um dever. Ufa! Fiquei com medo de rir da cara dele, estatelado ali no caixão. Mas parte do meu choro foi além da coreografia, um pouco era verdade, um pouquinho era verdade. Mas chorei muito mais por mim do que por ele. Chorei por ter sido tão burra, tanto tempo: ficava sozinha com onze crianças, a menor com seis anos. E o filho-da-puta sai de cena justo agora... Nessa mistura de alívio e incertezas, derramei umas gotinhas.” Era o que se esperava dela naquele momento.
— Fiz o que pude — confessa.
Fico pensando.
Meu pai morreu de ataque cardíaco. Meu avô, bisavô, tataravô, seu pai e o pai do pai dele, todos os meus antepassados morreram de ataque cardíaco. Meus tios e primos — da primeira, segunda e terceira geração, também. Meus irmãos, ameaçados. Até cunhado meu anda morrendo de ataque cardíaco. Tive, portanto, que romper com a tradição.
(Mais uma vez!)
Claro que, a respeito do ataque cardíaco, estou brincando. Mas, se substituirmos tal expressão por outra, fica melhor. Por exemplo, saudade do orgasmo. “Todos estão morrendo de saudade do Orgasmo.”
Disso — eu tenho certeza.
Orgasmo é um personagem que o Paritosh inventou...

Volto ao passado, de novo. Eu acho que meu pai bebia, não para ficar alegre, mas para esquecer as tristezas. Acontece que o coração dele, aparentemente, era movido a pressa, e quando a perdia se desesperava, querendo tornar-se apressado de novo. E assim por diante.
Era um círculo vicioso reduzido ao infinito.
Ele sempre nos concedia dois direitos: respirar, e ser escravo — mas só o segundo era exercido plenamente. Quando Júpiter visitava-lhe o peito, me dava bolachas com guaraná. E quando Júpiter se ia, ele me dava bola-chas com ódio. As primeiras, de trigo, se esfarelavam com amor na minha boca criança. As segundas, de palma, produziam feridas no meu ego. Naquela fase, ódio, guaraná e bolachas foram se alternando, cada vez mais.
O guaraná, eu bebia, mas o ódio — o ódio eu devolvia!
Por isso que, aos treze anos, tive que matar meu pai. Vou descrever a cena, falar das pressões, do amor, da família. Mas, como era tudo fruto da imaginação, descobri que nunca seria um assassino, porque já era escri-tor. Consegui cortar-lhe a cabeça num só golpe de machadinho de açougueiro, mas não fui capaz de quebrar as regras da gramática e do amor.
O texto ficou vermelho, cheio de sangue... e de licor.

Psicanaliso-me, com ajuda de Gaiarsa.

(...)

Beijos no céu da boca.

Como já nos ensinava nossa primeira professora, toda história tem começo, meio e fim. Então, por que todo esse espanto ao perceber que a nossa história — nossa história de amor — também vai ter começo, meio
... e fim?



A vida tem dois caminhos:
Ou você segue o caminho da Tristeza,
arma-se de medo, de ciúmes e de falsas alegrias,
arma-se de angústia, fecha os olhos, se acomoda,
e segue o rebanho dos que não sabem;
obedece regras injustas, não reage, não questiona,
não se aprimora, não lê, não significa,
nem percebe o absurdo em que se mete:
vende a própria natureza
por duas ou três moedas de aço,
troca a inocência pura pela responsabilidade apressada,
torna-se respeitável aos olhos da sociedade,
cumpre horários, nunca tem tempo,
preocupa-se com coisas banais;
comerciante das próprias emoções, já não brinca,
vive correndo, ama com pressa,
esquece-se da lua,
e se torna uma pessoa média, mediana, medíocre,
pequena, cansada e normal...
Ou você escolhe o caminho da Ousadia,
compreende, se aprofunda, vai mais longe, realiza,
respeita o ser humano que existe em você mesmo,
resgata a própria vida e o sorriso,
rompe de vez com o passado agonizante,
procura defender a verdade, a justiça e a poesia,
acorda e assopra o fogo da alma que dormia,
ultrapassa os limites que sufocam,
cavalga o cavalo negro, cego e alado
das paixões gostosas e sublimes,
enche o peito de coragem, corações e relâmpagos,
acende de novo esse vulcão que é o teu corpo,
deixa a própria cabeça plena de agora,
de ternura e de vertigem,
e parte em busca de Aventura, de Amor e Liberdade.
É uma simples questão de escolha.
Qual é o teu caminho?


(...)


Era outubro, chovia.
Fabiane, a musa que dançava sobre patins no asfalto da nossa rua, deliciosa, me traz um papel:
— Que coisa linda você escreveu pra Suzana!
— Escrevi tanta poesia pra ela... Qual é essa?
— Sobre a primeira vez que você a tocou sensualmente. Vou ler só o finalzinho, veja: “Se os deuses quiserem me fazer um grande favor, um favor especial; se quiserem me cobrir de glória outra vez, que me deem de novo, antes que eu morra, mais dois ou três segundos iguais àqueles”.
— Realmente — concordo.
— Mantém essas coisas que você disse, ainda hoje?
— Tudo o que escrevi e tudo o que pensei a respeito dela; tudo o que falei para Suzana será mantido até o fim dos meus dias.
— Ela foi a única paixão da tua vida?
— No sentido que você provavelmente pensa, não, pois te considero também uma paixão. Grande e também única.
— Como assim?
— Toda paixão é única. Só que Suzana é incomparavelmente única. E quando falo dela é como se falasse de alguém que está perto de mim, dentro de mim, sobre, embaixo, em volta de mim. Alrededor. E longe ao mesmo tempo. Suzana é um caso à parte...
Lembro aquela noite em Juqueí, no hotel, nós dois, foragidos, deita-dos num quarto com vista para o mar, as janelas abertas. E eu, quase sem voz, dizendo-lhe em pensamento: Agora, Suzana, agora que sinto teus mamilos espetando com açúcar minha língua trêmula, a pontinha dos seios tocando-me os lábios vermelhos; agora, que minha mão esquerda remexe teus cabelos negros, e acaricia tua orelha; quando ouço teus suspiros delicados nascendo do espírito e vivendo por tesão; agora que minha mão direita alcança de leve teu clitóris e vasculha teus pêlos e arrepios; quando sinto tuas unhas me riscando as costas de amor; agora, que estou envolvido por duas atmosferas de escândalo sobre nós; agora — justamente agora, Suzana — como eu poderia me esquecer de Deus? Como?
Fabiane me puxa de novo para fora de mim:
— E esses dois ou três segundos a que você se refere: gostaria de tê-los com ela outra vez?
— Impossível: dois segundos nunca se repetem — ao menos não com a mesma pessoa, o mesmo amor, o mesmo ardor, a mesma emoção. Dois segundos serão sempre outros.
— Então pode ser outra mulher?
— Deve ser outra — respondo convicto.
(E fico dois segundos pensando em Jenny Lou.)
Meu verbo vive em permanente estado de ereção, e não teria razões para colocar camisinhas nas palavras que profiro: Proteger-me do quê? Impedir metáforas de engravidar teus sonhos?
Jamais.
Porque sou um poeta — não animal invasor!
Não penetro minhas amadas, quase nunca. Primeiro, eu entro nelas com poesia. Depois, às vezes, com dedos delicados, mãos de seda, língua fantástica, ombro bronzeado, cotovelo dobrado, orelhas atiçadas, cérebro em ponto de bala. E um coração entusiasmado. Já interiorizei meu sexo e só falo com o próprio corpo. Um cetro sangüíneo é a última coisa que penso em colocar nas mãos de uma rainha. A tesão da minha poesia é inesgotável. Portanto, divinos os orgasmos que ela dá.
(Meu verbo vive em ereção.)
Hoje já é sete de março do ano que vem.
Ontem passaram por aqui Crazy e Dominique — as primeiras. O nome de Crazy é outro, mas não posso contar ainda. E fizemos amor da forma mais escandalosa e impressionante que os nossos loucos corações conseguiram. Oito horas ouvindo a faixa sete, Destination Anywhere, e tomando vinhos, brancos e vermelhos, comendo azeitonas gregas, conver-sando sobre a vida, tocando nossos corpos, uns nos outros — nus.
— Etc.
Nunca havia sido tão bom.
Caímos de cabeça na Ilha de Lesbos!
Tentei encontrar Danielle, mas não foi possível. (Sei que ela iria gostar também: formaríamos um quarteto de cordas). Meia noite depois, Diana trouxe uma prima, loirinha, parecendo um anjo de treze anos. Uma coisa "indescritível", por enquanto. Ainda não voava, mas já tinha asas...
Paritosh ficou tão impressionado que tive de contê-lo:
— Swami, ich möchte Käse! — grito com ele em alemão. "Nur eine kleine Portion". Ele sorri da minha pronúncia como dissesse: "Desse jeito, Edson, você nunca vai conseguir ler Johann Wolfgang von Goethe no original". Resignado, larga suavemente as mãos da princesinha, e vai buscar a pequena porção de queijo que lhe pedi.
Traz uma grande.
(A faixa sete é "It's Just Me" — Amo essa música!.)
No dia em que comprei "Os Sofrimentos do Jovem Werther" e esta-va lendo a primeira página, Paritosh me olhou, sarcástico:
— Edson, comece pelo "Fausto", em português. Você ainda olha mais para o dicionário do que para o Goethe...
(Acabei seguindo seu conselho.)
O sátiro corta, demoradamente, um pedacinho de queijo, pede que Diana feche os seus olhinhos e abra a boca — mas ele, antes de mais nada, faz teatro, acaricia os ombros dela.
— Lua, qual é mesmo o nome da tua priminha?
— Jenny Lou.
— Ah... Jenny Lou...
Com o pedacinho ainda suspenso de queijo, e Diana esperando, os lábios descolados, a boquinha sensual, ele me olha meneando a cabeça, sorriso de Mefistófeles, e repete:
— Jenny Lou, Mahatma — Jenny Lou...
(Diana, essa, é quem me deu o disco do Jon Bon Jovi. Há também a outra Diana, aquela... — para mim, inconfundíveis.)
Pouco depois chega R, a virgem dos mamilos enormes. Mais tarde, vestida de preto, loiríssima, Alexandra, aquela que um dia me disse: "Quando te conheci, Edson, e fizemos amor logo na primeira meia hora, pensei que você fosse um grande filho-da-puta — e te odiei. Depois, ao ver que era só um pequeno filho-da-puta, comecei a te amar, apesar de tudo. Mas quando fiquei apaixonada realmente, e vi aquele monte de mulheres ao teu lado, cheguei à conclusão de que você é um enorme filho-da-puta."
("Gigantesco".)
E eu aqui, agora, meio bêbado, no meio dessas mulheres todas. No meio, em cima, por baixo, por dentro, por fora, por frente — e às vezes por trás de algumas delas. Meio bêbado, mas excitado inteiro.
Aquela tarde, plena quarta-feira, com Crazy L. e Dominique, a coisa foi realmente fantástica!!!!!!!!! Toda vez que passo por aqui me lembro do amor que fizemos, e acrescento mais uma exclamação. Logo serão mil...
Mas se eu não me cuidasse todo dia muito bem, já não saberia mais o que de mim é meu, nem o que em mim sou eu. Alguém, com boas intenções e um sopro cansado, já teria apagado essa chama que sou. E eu seria uma triste coivara num monte de cinzas, uma flor ressequida em jardim pisoteado. Se eu não me cuidasse, seria só um burro carregado de certezas e de angústia. Estaria cheio de juízo, de filhos e dores. Já teria perdido a loucura, o jogo e a dança. Teria perdido a liberdade, o amor e o rumo. Se eu não me cuidasse muito bem, já estaria morto, enterrado e fodido.

Entretanto, tem coisas que jamais poderei contar.

Por exemplo, a conversa em alemão que tive com Marlene. Você sabe que as lagartixas usam força atômica para andar pelo teto e superfícies lisas? Elas se utilizam da chamada “força de Van der Waals”, que age em distâncias curtas entre átomos não ligados entre si. Os filamentos microscópicos, pelinhos cuja espessura não passa de um décimo de um fio de cabelo de Daniele, são conhecidos como setas. Um pé de lagartixa tem cerca de meio milhão dessas setinhas, e cada uma é subdividida em centenas de estruturas menores. Fiquei massageando os pézinhos de Marlene enquanto líamos a Nature na internet.

(...)

Uma confissão: a princesinha que encantou Paritosh com sua nudez de Botticelli aparentava quatorze, mas tinha quinze — e suas penugens despontavam ansiosas por nossas carícias inocentes, como se já tivessem dezesseis. Falando assim, e vivendo assim, suponho que, se, após minha morte — ou ida para a Grécia —, alguém abrir esses arquivos e ler o que digo que fizemos, vai achar que delirei, ou que usava drogas. Nem uma coisa nem outra. Delírio, só de prazer. E drogas, nem maconha. Antigamente, não fumava maconha por razões ideológicas: um marxista tinha que estar consciente. Agora — por não sei quê. Mas, só por curiosidade, saiba você que certas drogas agem no sistema nervoso central e aumentam a atividade cerebral. Algumas são de síntese, tais como ecstasy, nexus-erox, flatlyner, etc. Até mesmo o tetrahidrocanabinol já foi sintetizado e parece que se chama nabilone, o princípio ativo do colírio de marijuana.

Fico pensando, cá com os meus clitóris e botões. 13 anos: e minha pupila vê mais longe que meu mestre. Por isso vamos dizer que a princesinha tem quatorze — ou quinze. Acho melhor livrá-lo de um processo por sedução, aumentando ainda mais a idade da nova musa. Então ela passa a ter dezesseis. Para os estranhos, dezessete ou vinte e oito.
Porque amar pode ser crime.
A fêmea do crocodilo atinge a maturidade sexual por volta dos dez anos. O pintassilgo e a marreca, entre dez e doze meses. A leoa aos quatro anos, a jumenta aos dois, e assim por diante. Tudo devidamente catalogado e aceito. Mas, no caso dos humanos, a ciência ainda não conseguiu estipular uma idade correta, e os legisladores não chegam a um consenso. Na França diz-se que a mulher atinge sua maturidade sexual aos quatorze anos. No Japão, treze, na Espanha doze ou treze, na Argentina dezessete, no Brasil dezoito. Nos Estados Unidos, vinte e quatro. No Afeganistão... oitenta. Portanto, cuidado: em certos países, fazer amor pode ser crime.

(...)

Como me disse minha Vó Vitalina, enquanto colhíamos café maduro no quintal da casa dela certo dia: Se a tentação passar por você, meu filho (ela me chamava de filho), e for uma tentação muito forte e muito gostosa, você tem um único caminho a tomar: pense em Deus... — e peque!
Minha avó fumava, e guardava o fumo picado numa latinha enferrujada de manteiga Aviação. Delicadas palhas de milho, dobradinhas, cortadas, amarradas num laço de barbante antigo, esgarçado. Vitalina: eu não me lembro dela morta. Mas vejo-a ainda, de porta aberta, na privada do quintal, limpando-se por frente com um pedaço de papel de pão. Talvez por isso é que hoje detesto ver mulher fazer xixi: nenhuma imagem pode se sobrepor a essa que tenho viva de minha avó. Nenhuma.
Toda tarde, na janela do quarto, me aguardava passar voltando da escola. Todo dia me olhava lá de cima, sorrindo, eu lhe pedia “bença, vó!”, ela respondia “Deus te abençoe...”, — e então fechava a veneziana e se recolhia para rezar suas rezas de amor.
— Minha vó!
(De mais ninguém.)
Um dia ela me deu o melhor conselho da minha vida:
“Estude muito, não se case nunca e jamais tenha filhos!”
Esta é a receita básica do sucesso. Fora disso não há salvação.
Se você quiser saber como era a velhinha encantadora, assista ao filme tcheco "A Pequena Loja da Rua Principal". E procure aprender o significado de aférese.
“Lave as mãos antes de comer qualquer coisa” — me dizia.
Ela me ensinou o nome completo da Princesa Isabel. Nunca esqueci: Maria Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga — e d'Orleans, quando se casou com o Conde d'Eu. Certo dia me deu um pedacinho de papel meio amassado, que arrancou de um calendário que havia na parede da cozinha.
"Gravura de um pintor italiano."
— Sandro Botticelli.
Acabo de chorar por uns dez minutos sobre a "Virgem da Romã" que ele pintou. Anjos de asas douradas e rosas vermelhas na cintura, rode-ando feito loucos um menino Jesus que acabou de mamar. E vejo ainda “O nascimento de Vênus”, a inesquecível “Alegoria da Primavera”, “Natividade”, a vibrante “Alegoria da Calúnia” — tudo nele é magnífico. Se você somar os minutos que já ficou olhando um quadro qualquer de Botticelli, e o total não der no mínimo sessenta, é sinal de que você não sabe porra nenhuma da vida.

Fico olhando...

Mesmo os encontros que tenho com o Destino são marcados por mim — nunca por ele. Raramente erro, mas, quando erro, procuro errar de modo perfeito, — errar profundamente. Se for preciso que erre, quero sempre errar com doçura, com suavidade, consciência, critério, precisão.
Acostumei-me a ser o primeiro, em todos os sentidos.
E seria o primogênito, mesmo que viesse depois.
Único — mesmo se fosse muitos.
Também tenho dois Egos: um é este aqui, público, fascinante, que mostro aos meus amigos e aos meus amores; e o outro, lógico — é só pra mim. Ambos magníficos. Eu não seria capaz de tê-los se não os tivesse grandes, enormes, imortais. Um verdadeiro Ego não merece ser pequeno.
Mas, não confunda mediocridade com comedimento.
Porcos chafurdando num chiqueiro também podem sorrir, mas será que podemos considerá-los felizes? Zaratustra já nos dizia que é melhor ser um gladiador ensangüentado do que um porco contente...
(Uma mão na consciência, outra na faca!)


Toda obra prima causa espanto ao ser publicada. Esta não seria diferente. Você sabe quantas pessoas compraram o Ulisses de James Joyce nos primeiros dois anos após ter sido editado pela primeira vez? Você sabe quantos quadros vendeu Van Gogh durante toda sua vida?
É o preço que pagamos por antecipar o futuro.

(...)

Nesta manhãzinha, quando a luz se fere de noite ainda e me descobre, sento-me aqui fora, e começo a escrever. Meu coração é um viveiro, e meus amores, pássaros. Dois ou três pipilam no jardim. Há na grama letras e estrelas. As primeiras me esclarecem, as outras me iluminam.
Como Edson, Marx diz-me agora, capital e poético: “por mais escura que seja a madrugada, a menor gota de orvalho já contém todas as cores do universo. Mas a tradição, num absurdo gesto de violência, força nossa alma, em toda nossa grandiosidade, a refletir apenas uma cor: a cor cinzenta daquilo que se apaga.”
Estou morando numa casa que tem tramela, uma corruíra canta ali na laranjeira e a tampa da chaleira de alumínio começa a tremer lá dentro, no fogão de lenha. Nenhum barulho que não seja agradável. Um tiziu aveludado toma a decisão de me encantar, saltando vertical no palanque do portão. Se a gente não nasceu num lugar assim como esse pode ainda ter a sorte de renascer num parecido. Sinto-me um Herman Hesse, delicioso, cultivando rosas e alfaces, tocando clavicímbalos – e coçando o saco.
Na verdade, é bom confessar, a casa não tem tramela.
Fabiane me puxa de novo para o agora:
— Posso ser eu, talvez?
(Falávamos da possibilidade de me apaixonar de novo, por outra mulher que não Suzana.)
— Poeticamente sim, mas efetivamente — não.
— Por quê?
— Você não tem mais a inocência que Suzana tinha.
Ela abre os braços, simulando perplexidade:
— Então você só ama as inocentes? E as pecadoras, como ficam?
— Pecadoras não existem, você sabe. Tua inocência é apenas menos angelical que a de Suzana: — este é o ponto principal.
(Às vezes uso pronomes da segunda pessoa para aproximar-me da terceira. E se uma regra da gramática enjaula a Estética, temos de quebrá-la por amor. Tenho licença poética para ser livre.)
— Além de inocência, o que precisa ter a mulher para que você se apaixone por ela?
— Não sou em quem decide — respondo. — É meu coração.
Ela me olha candidamente, e pergunta:
— Onde está aquele teu poema das mulheres?
Levanto e vou procurar no armário do fundo.
“Sou um emprestador de verdades. Você pode usar as minhas quando quiser. Só que tem um problema: todas vão carregadas de dúvidas. E as dúvidas vão minar essa estrutura de ilusão que você adora tanto...” — fico pensando enquanto procuro.
Nossa! Há quanto tempo não lia os Provérbios do Inferno, de Willi-am Blake. Vejam este, que lindo: “O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria.” Volto com meu livro (então ainda inédito) “Beijos no céu da boca”, e abro na página 140. É um belo poema, escrito quando estáva-mos na cachoeira, e Suzana foi o modelo que se despiu dos preconceitos para que eu a esculpisse de amor entre os seus versos e folhagens.




Mulheres!


Não me bastam os cinco sentidos para perceber-lhes toda a beleza. Para viver o mistério profundo que trazem consigo, eu preciso de mais. Eu tenho que tocá-las, cheirá-las, acariciá-las, penetrar-lhes o sorriso, sentir o seu perfume, beijar-lhes o céu da boca, ouvir suas histórias, transformá-las em deusas. Tenho que dar-lhes o amor que ao meu corpo as conduz, e na volta sustenta-me a alma. O amor natural de todos os corpos do mundo. Tenho que dar-lhes a posse imprecisa de mim. Como num espelho de paixões em labareda, quero sentir nos seus olhos o mais raro brilho diamante.

Eu as amo como se lhes devesse a Vida. E as venero com a graça de um cisne nadando num lago tranqüilo e a ousadia de um touro selvagem recém-despertado. Não lhes faço perguntas, não as pressiono por nada, nem quero mudá-las jamais. Imagino o que sonham e entro no sonho delas. Cavalgo em pelo um cavalo branco para visitar-lhes as razões e as emoções, a loucura e a libido. Como um Deus que se liberta da sua própria mitologia, eu me surpreendo em nome da Criatura. Entro no coração de cada uma como se entrasse no meu. Mergulho nos seus desejos e me espanto com tanta fantasia, com tamanha formosura. Os sentidos, por não serem precisos, não bastam, e preciso mais do que cinco para compreendê-las.
Porque toda mulher é silenciosa por dentro. Sua existência se mani-festa em cada detalhe. Assim na terra como no céu, o amor tem que ser livre. Bendito sou eu entre as mulheres. Fazer amor tem que ser uma experiência religiosa. Por isso eu as amo como fina substância, como deve amar quem ama de verdade: incondicionalmente.

— Sem ciúmes.

Amo as morenas e as loiras, as baixinhas e as altas, as lindas, as quase feias. As virtuosas, as magras e as gordinhas. Diabólicas, tímidas, mentirosas, iluminadas, pecadoras ou santíssimas, virgens, pobres, ricas, loucas, inocentes ou safadinhas — não importa, eu amos todas. As bronzeadas e as branquinhas. As inteligentes e as nem tanto. Desde que sensíveis, eu amo as jovens, as velhas, as solteiras, as casadas, as noivas, as separadas. As amadas e as abandonadas. As livres, as que lutam por liberdade — e também as indecisas.

E se me dessem o poder, o tempo e a chance, eu a elas daria um orgasmo sublime — todos os dias. Poeticamente.
Apanharia flores silvestres, tomaria sol com todas elas. Andaríamos descalços na areia, contemplaríamos crepúsculos cor de abóbora, jantaríamos à luz de velas, dançaríamos. Tomaríamos vinho branco, comeríamos morangos. E eu lhes faria poemas de amor olhando estrelas.

Puro como um anjo, amaria todas eternamente — uma por vez. Com delicadeza, com doçura, com inocência. Entusiasmado, como se cada fosse única... Como se no mundo não houvesse mais nada. Todas as noites, sem pressa alguma, passaria cremes e encantos no seu corpo, falaria sobre fábulas, contaria histórias românticas, as veria dormir. Ao som de Vangelis, velaria por um tempo o sono delas, e de madrugada, antes do sol raiar, antes do primeiro pássaro cantar, cobriria seu corpo com o resto de luar que ainda houvesse.

— E sairia em silêncio.

Felino, deslizaria pelo cetim azul-celeste dos lençóis, saltaria por sobre todas as metáforas, e sorrindo iria embora.

Enfim, se eu fosse Deus, não mais cuidaria do universo, nem dessas coisinhas banais. Não ficaria controlando o destino das pessoas, o tempo, a pressa, a hora de chegar, o átomo, as ondas do mar, o caminho dos planetas, os genes, o cotidiano, a Internet, o infinito, a geografia...

Não!

Eu somente iria amar as mulheres.

Como elas merecem — e como nunca foram amadas.

Só isso, definitivamente.

Nada mais, nada mais.”


— Eu somente iria amar as mulheres.

Foi o que eu disse.
Fabiane recosta a cabeça no meu ombro, segura forte minhas mãos, sorri e me sugere:
— Não precisa dizer mais nada.
(Não digo?!)
Mas o tempo passa, voando, e hoje estou aqui. Escrevendo coisas que nem sei se alguém vai ler. “Ceux Qui parlent d’Amour sans le réfèrer a la vie quotidienne ont un cadavre dans la bouche” — se meu francês estiver bom, é assim que se reescreve algo que li na memória.

Penso no meu poema Mude e quero mudar de vida.
Mas não agora.


Vibro quando minha sensibilidade vai mais fundo que os meus olhos no objeto que eles tocam. Sinto que uma coisa redonda desliza entre nós nesta tarde azul do Guarujá. O Atlântico manda um vento oceânico e sinuoso sobre as coisas que vivemos, nós três, nesta hora feita de açúcar e escândalo. As cortinas voam. Cris me conta seus sonhos e diz que o maior deles está muito longe dela. Digo-lhe que isso é bom — e mau — ao mesmo tempo. Mau, porque há distância entre a coisa e seu desejo. E bom, porque já tem consciência do caminho a percorrer. E a distância é sempre doce!
Sentir-se preso é o primeiro passo para se ver livre.
Peço-lhe que me conte um sonho erótico, e ela fica falando. Sonhou com uma casa enorme, muros altos. Cris tem lábios indecisos, não sabem se riem ou me beijam. Fala como se nada tivesse a dizer, numa espécie contida e gostosa do que não se deve esconder. Seus mamilos crescem tanto quando suspira, despontam como dois sóis durinhos, e os de Janaína respondem de forma igual. E algo até mais profundo que a minha sensibilidade começa a sobrevoar nossas cabeças escandalosas. Cadeiras são arrastadas, copos se desesperam, as águas ficam revoltas, meu vinho vai transbordar...
Como um Zaratustra adolescente eu lhe pergunto:
— Diga-me, Cris, qual a coisa mais importante da vida?
(Ela responde com palavras que fascinam.)
— Volte ao sonho — então lhe peço.
(...)
E o sonho de Cris me joga direto no peito aberto de Freud. Janaína lembra que sonho "é a realização disfarçada de um desejo inconsciente". Para Freud, o inconsciente é uma espécie de saco de lixo, onde nossas experiências reprimidas se acumulam — ou seja, a parte não escrita da nossa biografia. Não sabemos o que fazer com tais coisas, mas também não as jogamos de vez. O inconsciente, para Jung, repousa na biologia, e as energias do corpo são as mesmas que nos fazem sonhar. Chamo Carl Gustav para que me ajude na análise, mas o sonho agora de Cris é a prometida massagem nos pés. Arrumo um colchão na sala, cubro-o de amor e cor de rosas, e peço-lhe que fique da forma que quiser. Cris então se deita de costas, e se entrega ternamente à minha espantosa naturalidade. Vejo uma alma que suspira desenhada no lençol, e me transformo no Picasso da primeira fase, preparando uma gravura. Suas pernas são perfeitas, seu corpo é feito à mão. Beijo-lhe a testa, peço que relaxe, tento soltá-la mais um pouco de si mesma, toco em todos os seus lábios entreabertos.
Ponho Enya trazendo celtas, recomendo:
— Feche os olhos, e só os abra se Janaína te pedir.
Então, de repente, faz-se o silêncio mais completo e mais gostoso que é possível de ser feito, nessas horas encantadas em que as emoções se mostram todas à flor da nossa pele. Janaína deita-se ao seu lado, e sussurra docemente: "Pense numa flor, Cris, e respire como se amasse..."
O que veio depois não é preciso que eu conte — sou discreto.
Só digo que teve tudo a ver com amor.
Com amor e liberdade.

Mas agora que ambas se foram, Ticiano se abre para mim, na página certa. Bebo o restinho de licor que ficou no copo quebrado, chupo a fatia de laranja baiana dentro dele, e beijo o olhar que Janaína deixou no espelho da sala, pregado como se fosse um bilhete.
Só me resta chamar Baco:
— Traga-me, Deus, mais um copo de vinho!




Já estamos em abril, e este ano ainda não abri nenhuma garrafa de vinho. Todas foram abertas por Baco — em pessoa. (Sei lá por quê, lembro agora que Dionísio conquistou a Índia viajando numa carrocinha puxada por dois tigres de Bengala). Assim como orgasmo, tem vinho lógico e vinho não. Alguns são silogismos, outros nos enganam — falsos raciocínios. Aqueles que têm premissa maior, premissa menor, e conclusão — todas verdadeiras — são dos bons: descem redondos, aromas complexos de frutas vermelhas, cedro, chocolate, e falam à baunilha atijolada. Mas, os outros, os outros não dizem quase nada.
Uma espécie de orgasmo chocho.
Puro vinagre!
Preciso às vezes pisar nos lagares em que me leva Baco. Piso, e piso dançando, não como se fizesse vinho, mas fizesse amor. Vinho e amor: essas coisas quase sempre se misturam, aos meus pés. Paritosh me garante que a louca arquitetura dos meus amores e a composição dos vinhos que Baco me traz — são coisas deliciosas que sempre o complementam.
Pode ser.
Certa época ele desapareceu por mais de quinze dias, o safado. Quando voltou, sorrindo, como se nada tivesse acontecido, dei-lhe um forte abraço e perguntei:
— Por que sumiste tanto tempo, Paritosh?
— Pra te conceder o direito de me sentir saudades!
Senti.
E quando Joyce Ann declarou certo dia uma paixão desesperada, ele foi radical na resposta que lhe deu: Não me queira tanto, assim, menina. Não imagine que eu vou durar para sempre. Sou só um passageiro do teu peito. Filho do relâmpago, brilho muito e sumo logo.
Só o que está morto não some.
(...)
Tem gente que é capaz de morrer, tentando ser feliz.
Mas do lado errado.
Os idiotas quase se matam na luta por aquilo que chamam de vida. Usam dois relógios de pulso, pager, telefone, celular. Amam o despertador como se amassem um deus, tomam taxi, ônibus, avião, metrô, lotação, elevador. E ainda sobem escadas, inclusive rolantes. Às vezes brincam, namoram, brigam, casam, ficam, descasam, se esgotam, casam de novo, trabalham, separam, quase piram. Se perdem, gritam, correm, caem, saco-dem, suspiram, levantam, quase nem respiram. Trabalham, se ferram, atendem, digitam, suportam, bajulam. Engolem, rastejam, trabalham mais ainda, se juntam de novo, empacotam, remendam, amarram, vomitam.
— E ainda sorriem...
Mas o pior é que fazem tudo isso, e continuam infelizes.
Esses medíocres não pensam na possibilidade de mudar de vida. Ridículos, acham que seu estilo de viver é o máximo.
— Que horror!
Parece que misturam em si mesmos doença e crueldade.
Sócrates dizia que os maus acabam fazendo mal a seus próximos, e os bons, algum bem. Concordo — porque os maus não podem ser bons a ninguém, pois isso seria contraditório. Os maus não conseguem amar, nem podem ser amigos. Por mais que pretendam fazer algum bem a quem pensam querer bem, será um bem sem virtude, feito por escusos interesses, com segundas e horrorosas intenções. Nunca será um bem natural, espontâneo, puro, porque isso vai contra a própria natureza dos maus. Fuja dos maus, portanto — enquanto é tempo. Procure os bons.
E Paritosh me ajuda no raciocínio:
— Os maus acabam sendo cruéis também para si, mais cedo ou mais tarde, pois, ao conviverem consigo mesmos por muito tempo, e fazendo o mal que sempre fazem, deturpam o restinho de alma que ainda possam ter. A menos que entrem num contraditório processo de alienação, tornam-se insuportáveis para si mesmos. Além do mais, acabam ficando péssimos.
— Só é cruel quem é fraco — eu digo.
— Claro: quem é forte não precisa ser cruel — ele finaliza.
Tento mudar de assunto:
— Conte-nos alguma coisa do Kama Sutra, Paritosh.
— Depois. Agora quero fazer umas rabanadas.
"O inteligente nunca será cruel."
Peço que coloque La Traviatta, pois estou com saudades do Verdi. Ele sorri, levanta-se em silêncio e põe La Cumparsita! Abre os braços e sai voando em direção à cozinha, dançando alto, irônico: “Si supieras, que aún dentro de mi alma conservo aquel cariño que tuve para ti...”
Joyce Ann me abraça e diz, sussurrando:
— Esse cara parece louco...
— É o jeito dele, logo você se acostuma — justifico. E mais tarde vi que também dancei: “Los amigos ya no vienen ni siquiera a visitarme, nadie quiere consolarme en mi aflicción...”
— O que significa o nome Paritosh? — ela pergunta.
— Paritosh Keval: Contentment, Aloneness.
— Não entendi...
Contentamento em solitude, alegria de estar só.
(...)